Era uma noite muito fria de
dezembro. Começaram por nos cortar o cabelo, depois nos marcaram com um número
no braço esquerdo. "Não existem palavras para descrever aquele inferno"
Anita Lasker-Wallfisch
nasceu em Breslau, na Alemanha (atualmente Wroclaw, na Polônia). Tal como
acontecia em muitas famílias judias da cidade, a música fazia parte do
dia-a-dia: a mãe tocava violino, o pai, advogado, era cantor e as três filhas
formavam um trio.
Anita, a mais nova,
escolheu o violoncelo. "Um instrumento que, na época, era muito pouco
popular entre as moças" -, recorda ela, com um sorriso. O violoncelo
acabaria por torná-la, anos mais tarde, numa das poucas sobreviventes do campo
de Auschwitz-Birkenau.
A partir de 1933, os judeus
de Breslau - até aí, totalmente integrados na sociedade alemã - começaram a
sentir na pele o ódio alimentado pela propaganda nazista. "A primeira vez
que notei foi na escola.
Tinha oito anos.
Preparava-me para limpar o quadro quando uma das crianças gritou: 'Não dê o
apagador à judia! 'Mais tarde, outras crianças começaram a cuspir em mim na rua
e me chamarem de 'porca judia'.
Eu não conseguia perceber o
que estava a acontecendo" -, conta. A família tentou emigrar, mas sem
êxito (apenas Marianne, a irmã mais velha de Anita, conseguiu fugir da
Alemanha, em 1939).
Em abril de 1942, os pais
foram deportados e enviados para Leste, para uma cidade chamada Isbiza, perto
de Lublin. "Tinha 16 anos e nunca mais os vi.
Depois soube que em Isbiza
os alemães obrigavam os judeus a cavar as suas próprias sepulturas,
mandavam-nos despir e disparavam" -, diz.
Poucos meses depois, Anita
foi detida em Breslau e mais tarde enviada para os campos de Auschwitz e de
Bergen-Belsen.
Depois da guerra, mudou-se
para a Inglaterra. Casou com um pianista, tornou-se violoncelista profissional
e foi uma das fundadoras da English Chamber Orchestra.
Aos 79 anos, aposentada e
viúva, Anita Lasker-Wallfisch continua vivendo em Londres, rodeada de fotografias
do marido, dos filhos e dos netos. Como ela, todos músicos.
Ela foi presa pela primeira
vez, em 1942, estava empregada numa fábrica de papel de Breslau. Mas só tinha
um pensamento na cabeça: fugir da Alemanha. A ideia era alcançar a França.
Não fui muito longe. Na
verdade, não passou da estação ferroviária. Provavelmente estava sendo
observada pela Gestapo. Como tinha falsificado documentos, foi mandada para uma
prisão.
O absurdo da sua situação
foi que o fato de ter cometido um crime acabou por ser salva. Ficou na prisão
durante mais de um ano e isso provavelmente retardou a sua deportação para um
campo de concentração.
Sua chegada à Auschwitz foi
numa noite fria de dezembro. Começavam por cortar seus cabelos, depois marcavam
seus braços com um número - o seu era o 69388 - tiravam toda a roupa. Nus, sem
cabelo, numerados. Era fácil perder todo o sentido da dignidade humana e da
identidade.
Ela não sabe por que, mas
lembrou-se de dizer que tocava o violoncelo - que coisa mais ridícula numa
circunstância como aquela! - Disse. Mas alguém foi de imediato buscar a maestra
da orquestra de Auschwitz.
Chamava-se Alma Rosé e era
sobrinha de Gustav Mahler. Em vez de ser mandada para a câmara de gás, teve uma
conversa sobre música. - Eles precisavam de alguém no violoncelo.
A orquestra tinha cerca de
40 pessoas e alguns instrumentos inesperados, como mandolins, harmônicas e um
acordeão. Alma era uma pessoa muito disciplinada. Ela mantinha a orquestra
debaixo de um rigor muito severo e punia quem errava uma nota.
Uma vez fui castigada e
tive de limpar o assoalho de todo o bloco. Na época eu achava que aquilo era
loucura, mas agora vejo que toda aquela disciplina de ferro ajudava - a ela,
também - a manter a concentração. E a sobreviver -, disse Anita.
Viviam todos concentrados
na orquestra e no pavor de falhar, que nos mantinha num mundo à parte. Não
olhavam pela janela. Se olhassem, poderiam ver a chaminé e a fumaça dos corpos
que ardiam.
Ouviam os gritos das
pessoas, os cães que ladravam. Enquanto isso, eles viviam obcecados em tocar as
notas certas. Era uma loucura.
Mas o medo é como a dor.
Quando vivemos muito tempo com ele, acabamos por nos habituar. Anita Sobreviveu
um ano em Auschwitz e isso se se deveu, sem dúvida, ao fato de ser membro da
orquestra.
“- Enquanto os alemães
quisessem uma orquestra, não faria muito sentido matar-nos. Era fácil
substituir as pessoas que carregavam pedras. Mas os membros da orquestra não -,
disse.”
A função era tocar todas as
manhãs e todos os fins de tarde perto dos portões do campo, por vezes debaixo
de temperaturas negativas. Os alemães gostavam de música e de organização.
Centenas de presos que
faziam trabalhos forçados tinham de marchar ao ritmo da música. As reações
deles eram variadas. Muitos diziam que era maravilhoso ouvir música e poder
fechar os olhos e sonhar que se estava noutro mundo.
Outros achavam ofensivo.
Aos domingos davam um concerto e os alemães também costumavam ir. Tocavam todo
o tipo de música: êxitos populares, Schumann, Dvorak, árias de Puccini, Verdi,
etc.
Além disso, tinham que
estar disponíveis para tocar a qualquer hora para os SS que por vezes vinham ao
bloco com vontade de relaxar ao som de música depois de um dia passado a
decidir quem iria ser mandado para as câmaras de gás.
Os membros da orquestra
eram de certa forma, privilegiados. Mas ninguém tinha ilusões. Sabiam que mais
cedo ou mais tarde acabariam na câmara de gás. Estavam todos condenados à
morte.
Não parecia nem um pouco
plausível que alguém pudesse sair de Auschwitz com vida. Mas depois aconteceu
um milagre. Os russos aproximaram-se e os guardas, um dia, mandaram todos sair
às pressas do bloco.
Todos pensaram que
finalmente iam ser mandados para a câmara de gás. Em vez disso, colocaram todos
num caminhão de transporte de gado e os levaram para ocidente, para o campo de
Bergen-Belsen (perto de Hannover, na Alemanha) ninguém conhecia Bergen-Belsen.
Era muito diferente de
Auschwitz, um campo de extermínio muito bem organizado e com toda a
infraestrutura. As pessoas eram assassinadas de uma forma sofisticada.
Em Belsen, elas
simplesmente extinguiam-se. Ficavam sentados olhando uns para os outros,
assistindo o espetáculo da sua própria degradação.
Belsen não tinha condições
para receber as centenas e centenas de pessoas - na verdade, esqueletos meio
vivos, meio mortos - que chegavam todos os dias dos outros campos devido ao
avanço das tropas aliadas.
Muitos morriam no caminho.
Dormiam em tendas que ruíam debaixo da chuva. – “Não existem palavras para
descrever aquele inferno.
Eu tinha 19 anos, mas
sentia-me com 90. Os cadáveres amontoavam-se. Não tínhamos comida, nem água -
nada. Ocasionalmente, alguém encontrava uma couve.
As doenças espalhavam-se.
Abril de 1945 foi um mês muito quente e o efeito da temperatura naquela
montanha de corpos foi simplesmente horrível.
- “Nunca poderei esquecer o
dia da libertação. Parecia um milagre. Por volta das cinco da tarde do dia 15
de abril de 1945, o primeiro tanque britânico entrou no campo. De repente
tínhamos aquele espaço livre todo à nossa frente.
Mas não recebemos os nossos
libertadores com gritos de alegria. Ficamos em silêncio. Em silêncio, porque
era difícil de acreditar. No fundo, todos tínhamos uma pequena suspeita que
aquilo tudo não passava de um sonho.
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