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quinta-feira, agosto 29, 2024

Farkhunda Malikzada


 

Em 19 de março de 2015, Farkhunda Malikzada, uma mulher afegã de 27 anos, foi brutalmente linchada por uma multidão enfurecida nas ruas de Cabul, capital do Afeganistão.

Conhecida simplesmente como Farkhunda, ela foi acusada falsamente de queimar o Alcorão, o livro sagrado do Islã, uma alegação que incitou uma violência desmedida e expôs as profundas tensões sociais, religiosas e de gênero no país.

O caso chocou o mundo e tornou-se um marco na luta pelos direitos das mulheres no Afeganistão, destacando a fragilidade da justiça e a persistência de práticas patriarcais em uma sociedade marcada por décadas de conflito.

Farkhunda era uma muçulmana praticante e devota, que usava o véu e dedicava sua vida ao estudo da religião. Recém-formada em estudos islâmicos, ela trabalhava como professora religiosa na mesquita Shah-Do Shamshira, um dos santuários mais antigos de Cabul, e preparava-se para assumir um cargo permanente como educadora.

Seu nome, em persa, significa “auspicioso” e “júbilo”, um contraste trágico com o destino que a aguardava. Conhecida por sua inteligência e coragem, Farkhunda frequentemente desafiava práticas que considerava contrárias aos ensinamentos do Islã, o que a colocou em conflito com figuras religiosas locais.

O Incidente

O estopim do linchamento ocorreu após uma discussão entre Farkhunda e Zainuddin, um mulá que operava na mesquita Shah-Do Shamshira. Farkhunda criticou abertamente a prática de Zainuddin de vender amuletos, que ela considerava uma exploração supersticiosa dos fiéis, incompatível com os princípios islâmicos.

Em retaliação, o mulá a acusou publicamente de queimar o Alcorão, uma acusação gravíssima em um país onde a blasfêmia é vista como uma ofensa imperdoável.

Farkhunda negou veementemente, declarando: “Eu sou muçulmana, e muçulmanos não queimam o Alcorão!” Apesar de sua defesa, a acusação de Zainuddin espalhou-se rapidamente, inflamando uma multidão de homens que se reuniu no local.

Centenas de pessoas, movidas por rumores e fanatismo, cercaram Farkhunda em frente à mesquita. A polícia local chegou ao local, mas sua resposta foi ineficaz e, em alguns casos, conivente.

Inicialmente, os policiais tentaram levá-la a uma delegacia a cerca de um quilômetro de distância, mas Farkhunda recusou-se a ir sem a presença de uma policial feminina, temendo por sua segurança.

A multidão, cada vez mais agressiva, aproveitou a hesitação e arrastou-a para a rua, onde o linchamento começou. Farkhunda foi derrubada, espancada com socos e chutes, e atacada com paus e pedras.

Em uma tentativa de protegê-la, a polícia levou Farkhunda de volta à mesquita e, posteriormente, içou-a até o telhado do edifício. No entanto, a multidão, agora alimentada por rumores de que Farkhunda trabalhava para os Estados Unidos ou para a embaixada francesa, tornou-se incontrolável.

Pedras e tábuas foram atiradas contra ela, e Farkhunda, ferida e desorientada, escorregou e caiu novamente nas mãos dos agressores. O que se seguiu foi uma sequência de atos de extrema crueldade: ela foi arrastada pelas ruas, pisoteada, atropelada por um carro - que arrastou seu corpo por quase 100 metros - e, finalmente, queimada às margens do rio Cabul.

Como seu corpo, encharcado de sangue, não pegava fogo facilmente, os agressores rasgaram suas próprias roupas para alimentar as chamas. Durante o linchamento, a multidão gritava “Allahu Akbar” (Deus é grande) e slogans antiamericanos, acusando-a de traição e blasfêmia.

Testemunhas relataram que a polícia, em vez de intervir de forma decisiva, direcionou o tráfego ao redor do local, permitindo que a violência continuasse sem resistência.

Vídeos gravados por espectadores, que circularam amplamente nas redes sociais, mostraram a brutalidade do ataque e a passividade das forças de segurança, intensificando a indignação pública.

As Investigações e o Julgamento

Investigações policiais posteriores confirmaram que Farkhunda não havia queimado o Alcorão. A acusação de Zainuddin foi considerada uma retaliação pessoal, motivada pela crítica de Farkhunda às suas práticas.

O caso gerou uma onda de revolta no Afeganistão e no exterior, pressionando as autoridades a agir. Ao todo, 49 pessoas foram presas em conexão com o linchamento. O julgamento, amplamente acompanhado pela mídia, resultou nas seguintes condenações:

Três homens receberam penas de 20 anos de prisão.

Oito homens foram condenados a 16 anos.

Um menor de idade recebeu uma pena de 10 anos.

Onze policiais foram condenados a um ano de prisão por negligência, devido à sua falha em proteger Farkhunda.

Embora as condenações tenham sido vistas como um passo em direção à justiça, muitas ativistas e familiares de Farkhunda consideraram as penas leves, especialmente para os policiais, cuja inação contribuiu diretamente para sua morte.

Além disso, algumas das sentenças foram posteriormente reduzidas ou revertidas em recursos, o que alimentou críticas sobre a impunidade no sistema judicial afegão.

Contexto e Impacto

O assassinato de Farkhunda ocorreu em um momento de grande instabilidade no Afeganistão. Após a intervenção militar liderada pelos Estados Unidos em 2001, que derrubou o regime talibã, o país passava por uma transição difícil, marcada por avanços frágeis em direitos humanos e pela persistência de práticas conservadoras.

As mulheres, embora tivessem conquistado direitos como acesso à educação e participação política, continuavam enfrentando discriminação sistêmica, violência doméstica e linchamentos informais em áreas onde a justiça tribal prevalecia.

A acusação de blasfêmia, como no caso de Farkhunda, era frequentemente usada para silenciar dissidentes ou resolver disputas pessoais, especialmente contra mulheres que desafiavam normas patriarcais.

A morte de Farkhunda desencadeou protestos massivos em Cabul e outras cidades, liderados principalmente por mulheres. Milhares de pessoas, incluindo ativistas, estudantes e membros da sociedade civil, saíram às ruas exigindo justiça e o fim da violência de gênero.

Em um ato de coragem, dezenas de mulheres carregaram o caixão de Farkhunda durante seu funeral, desafiando a tradição de que apenas homens participam de cerimônias fúnebres.

Esses protestos marcaram um momento raro de mobilização pública em defesa dos direitos das mulheres, atraindo atenção internacional para as condições precárias enfrentadas por elas no Afeganistão.

Em homenagem a Farkhunda, o Partido de Solidariedade do Afeganistão, uma organização de esquerda que defende os direitos humanos, apoiou a construção de um memorial em Cabul.

O monumento tornou-se um símbolo de resistência e um lembrete da luta contínua por igualdade de gênero. Além disso, o caso levou a debates nacionais sobre a necessidade de reformas no sistema judicial, maior proteção para as mulheres e a erradicação de práticas extrajudiciais baseadas em acusações de blasfêmia.

Legado

O assassinato de Farkhunda Malikzada permanece como um dos episódios mais trágicos e emblemáticos da história recente do Afeganistão. Sua morte expôs as contradições de um país que buscava modernizar-se enquanto lidava com o peso de tradições patriarcais e extremismo religioso.

Para muitas afegãs, Farkhunda tornou-se um ícone de coragem, uma mulher que pagou o preço final por defender suas crenças e desafiar a injustiça. Com o retorno do Talibã ao poder em agosto de 2021, o legado de Farkhunda ganhou ainda mais relevância.

As conquistas em direitos das mulheres, já frágeis na época de sua morte, enfrentam retrocessos significativos sob o novo regime. O memorial em Cabul, embora ainda de pé em 2025, está sob risco em um contexto de crescente repressão.

Mesmo assim, a história de Farkhunda continua inspirando ativistas dentro e fora do Afeganistão, servindo como um chamado à ação contra a violência de gênero e a intolerância.


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