O Sacrifício de Isaque: por que a moral divina é um perigo para a humanidade
Inquisição,
Cruzadas, caça às bruxas, jihadismo, pedofilia encoberta por hierarquias
eclesiásticas, atentados terroristas em nome de Alá… Esqueçam tudo isso por um
instante.
Para demonstrar que a religião não tem o monopólio da moral - e que, pior, uma moral fundamentada na obediência cega a uma autoridade divina é um risco concreto para a espécie humana -, nenhum ateu precisa recorrer aos episódios sangrentos que a história celebrizou. O drama de Abraão e Isaque, narrado no Gênesis 22, já basta. E basta sobrar.
O que realmente aconteceu no Monte Moriá
Deus -
ou, como prefere o texto hebraico, YHWH - aparece a Abraão e dá uma ordem
cristalina:
“Toma
teu filho, teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai à terra de Moriá; oferece-o
ali em holocausto sobre um dos montes que eu te indicarei.” (Gn 22,2)
Reparem
no sadismo psicológico da frase: “teu único filho, a quem amas”. Deus esfrega
na cara de Abraão o quanto aquela ordem é monstruosa. Não é um teste qualquer;
é o teste supremo de lealdade absoluta.
Abraão,
que já havia expulsado Agar e Ismael ao deserto por ordem do mesmo Deus, não
hesita. Acorda cedo, parte a lenha, selou o jumento, leva o filho e dois
servos.
Três
dias de viagem - três dias para refletir se aquilo fazia algum sentido ético.
Não há registro de que tenha dormido mal uma única noite. Chegando ao local,
constrói o altar, amarra Isaque (em hebraico ʿaqēdāh, “a ligação”), coloca-o
sobre a lenha e ergue a faca. Só então um anjo intervém:
“Abraão!
Abraão! […] Não estendas a mão contra o menino […] porque agora sei que temes a
Deus, pois não me negaste teu filho, teu único filho.” (Gn 22,11-12)
Deus
“agora sabe”. Ou seja, antes da obediência até o filicídio ele não tinha
certeza. A moral divina depende de prova empírica de subserviência total.
Por que Abraão obedeceu? (spoiler: não foi por amor)
Qualquer
pai ou mãe minimamente decente, ao ouvir ordem tão abjeta, mandaria Deus para
aquele lugar - ou, no mínimo, perguntaria: “Por que, exatamente, o Criador do
Universo precisa que eu mate meu filho para provar que sou fiel?” Abraão não
perguntou. Por quê?
Porque
a ética dele não era baseada em empatia ou razão, mas em autoridade.
Para Abraão, o certo e o errado não surgem do sofrimento que uma ação causa a
um ser humano inocente, mas de quem emitiu a ordem. Se YHWH mandou, está
automaticamente certo - ponto final.
Porque ele já tinha histórico de obediência cega.
Expulsar
a concubina e o filho mais velho para o deserto (Gn 21) foi o “teste
preparatório”. Abraão passou com louvor. O sacrifício de Isaque foi apenas a
prova final do mesmo padrão: o valor de uma vida humana é zero diante da
vontade divina.
Porque a narrativa foi escrita para legitimar exatamente isso.
O texto
não condena Abraão; exalta-o. Todas as três religiões abraâmicas (judaísmo,
cristianismo e islamismo) consideram-no modelo de fé. No islamismo, aliás, a
vítima é Ismael, mas o enredo é idêntico: obediência até o assassinato ritual.
O precedente perigoso que ainda vigora
Esse
episódio não é apenas uma curiosidade bíblica. Ele criou um paradigma ético que
sobrevive há milênios:
No
judaísmo ortodoxo: a ʿaqēdāh é celebrada todo Rosh Hashaná. A mensagem
litúrgica é clara: a disposição de matar o próprio filho por Deus é o ápice da
piedade.
No
cristianismo: Paulo (Romanos 4) e Hebreus 11,17-19 elogiam a “fé” de Abraão que
“ofereceu Isaque”. Kierkegaard, em Temor e Tremor, chama-o de “cavaleiro da fé”
justamente por suspender a ética universal em nome do absurdo divino.
No
islamismo: a festa do Eid al-Adha reencena anualmente o sacrifício, com milhões
de animais degolados para lembrar que a obediência à Alá supera qualquer
consideração humana.
Consequências reais no mundo contemporâneo
2001:
19 homens sequestram aviões e matam 2.977 pessoas “porque Alá ordenou”.
2023:
colonos judeus ultraortodoxos justificam limpeza étnica na Cisjordânia citando
“a terra que Deus prometeu a Abraão”.
2024:
pais nos EUA negam transfusão de sangue a filhos com câncer “porque Jeová
proíbe” (Testemunhas de Jeová perdem cerca de 300 crianças por ano assim).
2025:
uma mãe em Goiás, Brasil, mata o filho de 8 anos a facadas “porque Deus pediu”
(caso real noticiado em janeiro). Todos eles são herdeiros diretos de Abraão no
Monte Moriá. A diferença é só de escala e tecnologia.
A lição
que o ateísmo nos força a encarar
Se a
fonte última da moral é uma entidade que pode, a qualquer momento, ordenar o
assassinato de inocentes “para testar fé”, então não existe crime que não possa
ser justificado. Estupro, genocídio, infanticídio - tudo vira “vontade de Deus”
se a voz certa sussurrar no ouvido certo.
A moral
humana só se torna segura quando ancorado em dois pilares que Abraão rejeitou:
Empatia
consequencialista: uma ação é errada se causa sofrimento desnecessário a seres
sencientes.
Razoabilidade
crítica: nenhuma ordem - nem de deus, nem de profeta, nem de livro sagrado -
está acima do escrutínio racional.
Abraão
falhou nos dois. E o mundo ainda paga o preço.
Enquanto
houver quem veja no patriarca do Moriá um exemplo a ser seguido, o sacrifício
de Isaque não será apenas uma história de 3.800 anos atrás. Será uma ameaça bem
viva - e com faca na mão.









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