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terça-feira, novembro 11, 2025

O Sacrifício de Isaque


O Sacrifício de Isaque: por que a moral divina é um perigo para a humanidade

Inquisição, Cruzadas, caça às bruxas, jihadismo, pedofilia encoberta por hierarquias eclesiásticas, atentados terroristas em nome de Alá… Esqueçam tudo isso por um instante.

Para demonstrar que a religião não tem o monopólio da moral - e que, pior, uma moral fundamentada na obediência cega a uma autoridade divina é um risco concreto para a espécie humana -, nenhum ateu precisa recorrer aos episódios sangrentos que a história celebrizou. O drama de Abraão e Isaque, narrado no Gênesis 22, já basta. E basta sobrar.

O que realmente aconteceu no Monte Moriá

Deus - ou, como prefere o texto hebraico, YHWH - aparece a Abraão e dá uma ordem cristalina:

“Toma teu filho, teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai à terra de Moriá; oferece-o ali em holocausto sobre um dos montes que eu te indicarei.” (Gn 22,2)

Reparem no sadismo psicológico da frase: “teu único filho, a quem amas”. Deus esfrega na cara de Abraão o quanto aquela ordem é monstruosa. Não é um teste qualquer; é o teste supremo de lealdade absoluta.

Abraão, que já havia expulsado Agar e Ismael ao deserto por ordem do mesmo Deus, não hesita. Acorda cedo, parte a lenha, selou o jumento, leva o filho e dois servos.

Três dias de viagem - três dias para refletir se aquilo fazia algum sentido ético. Não há registro de que tenha dormido mal uma única noite. Chegando ao local, constrói o altar, amarra Isaque (em hebraico ʿaqēdāh, “a ligação”), coloca-o sobre a lenha e ergue a faca. Só então um anjo intervém:

“Abraão! Abraão! […] Não estendas a mão contra o menino […] porque agora sei que temes a Deus, pois não me negaste teu filho, teu único filho.” (Gn 22,11-12)

Deus “agora sabe”. Ou seja, antes da obediência até o filicídio ele não tinha certeza. A moral divina depende de prova empírica de subserviência total.

Por que Abraão obedeceu? (spoiler: não foi por amor)

Qualquer pai ou mãe minimamente decente, ao ouvir ordem tão abjeta, mandaria Deus para aquele lugar - ou, no mínimo, perguntaria: “Por que, exatamente, o Criador do Universo precisa que eu mate meu filho para provar que sou fiel?” Abraão não perguntou. Por quê?

Porque a ética dele não era baseada em empatia ou razão, mas em autoridade.
Para Abraão, o certo e o errado não surgem do sofrimento que uma ação causa a um ser humano inocente, mas de quem emitiu a ordem. Se YHWH mandou, está automaticamente certo - ponto final.

Porque ele já tinha histórico de obediência cega.

Expulsar a concubina e o filho mais velho para o deserto (Gn 21) foi o “teste preparatório”. Abraão passou com louvor. O sacrifício de Isaque foi apenas a prova final do mesmo padrão: o valor de uma vida humana é zero diante da vontade divina.

Porque a narrativa foi escrita para legitimar exatamente isso.

O texto não condena Abraão; exalta-o. Todas as três religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) consideram-no modelo de fé. No islamismo, aliás, a vítima é Ismael, mas o enredo é idêntico: obediência até o assassinato ritual.

O precedente perigoso que ainda vigora

Esse episódio não é apenas uma curiosidade bíblica. Ele criou um paradigma ético que sobrevive há milênios:

No judaísmo ortodoxo: a ʿaqēdāh é celebrada todo Rosh Hashaná. A mensagem litúrgica é clara: a disposição de matar o próprio filho por Deus é o ápice da piedade.

No cristianismo: Paulo (Romanos 4) e Hebreus 11,17-19 elogiam a “fé” de Abraão que “ofereceu Isaque”. Kierkegaard, em Temor e Tremor, chama-o de “cavaleiro da fé” justamente por suspender a ética universal em nome do absurdo divino.

No islamismo: a festa do Eid al-Adha reencena anualmente o sacrifício, com milhões de animais degolados para lembrar que a obediência à Alá supera qualquer consideração humana.

Consequências reais no mundo contemporâneo

2001: 19 homens sequestram aviões e matam 2.977 pessoas “porque Alá ordenou”.

2023: colonos judeus ultraortodoxos justificam limpeza étnica na Cisjordânia citando “a terra que Deus prometeu a Abraão”.

2024: pais nos EUA negam transfusão de sangue a filhos com câncer “porque Jeová proíbe” (Testemunhas de Jeová perdem cerca de 300 crianças por ano assim).

2025: uma mãe em Goiás, Brasil, mata o filho de 8 anos a facadas “porque Deus pediu” (caso real noticiado em janeiro). Todos eles são herdeiros diretos de Abraão no Monte Moriá. A diferença é só de escala e tecnologia.

A lição que o ateísmo nos força a encarar

Se a fonte última da moral é uma entidade que pode, a qualquer momento, ordenar o assassinato de inocentes “para testar fé”, então não existe crime que não possa ser justificado. Estupro, genocídio, infanticídio - tudo vira “vontade de Deus” se a voz certa sussurrar no ouvido certo.

A moral humana só se torna segura quando ancorado em dois pilares que Abraão rejeitou:

Empatia consequencialista: uma ação é errada se causa sofrimento desnecessário a seres sencientes.

Razoabilidade crítica: nenhuma ordem - nem de deus, nem de profeta, nem de livro sagrado - está acima do escrutínio racional.

Abraão falhou nos dois. E o mundo ainda paga o preço.

Enquanto houver quem veja no patriarca do Moriá um exemplo a ser seguido, o sacrifício de Isaque não será apenas uma história de 3.800 anos atrás. Será uma ameaça bem viva - e com faca na mão.

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