Uma sondagem de opinião
feita num programa de TV, e mostrada em pequenos e sucessivos instantâneos,
revela uma série de rostos contraídos pedindo penas severas de tortura e morte,
como remédio para a onda de assaltos e homicídios nas grandes cidades.
O clima de insegurança e de
revolta ante a impunidade foi o principal móvel dessa indignação generalizada.
O que não foi talvez apreciado devidamente é o potencial de violência contido
nos que clamavam por justiça e castigo.
O homem comum foi atingido
fundamente em sua tranquilidade, naquele território onde é indispensável
garantir um mínimo de paz. A perda da segurança desencadeia no homem
sentimentos contraditórios e desperta uma energia que visa reconquistar seu
oásis, sem o qual não vale a pena viver.
A revolta é compreensível,
o cansaço também, mas os remédios sugeridos à autoridade são desproporcionais,
inadequados e sintomáticos.
Na pesquisa as pessoas
exigiam, no mínimo, a morte dos delinquentes. Muitos imaginavam suplícios
variados, como esfolamento e amputação de membros.
As opiniões eram dadas com
gravidade, e soavam como sentenças. Era vingança o que se pedia não a aplicação
da lei ou a punição de um delito.
Mas não vem ao caso
discutir a validade da pena de talião: o importante é examinar o tipo de impulso
que levou tantas pessoas a pedir a morte e a tortura dos delinquentes que
agem nas grandes capitais.
Era a mesma violência,
exatamente a mesma, que arma o braço dos assaltantes, prepara o furto e induz
ao homicídio. Naquele instante, o mundo foi dividido entre ofensores e
ofendidos, os segundos exigindo reparação imediata e cruenta de todas as
ofensas recebidas.
Eram todos linchadores
potenciais que pediam um culpado em suas mãos, para que se pudesse fazer com
ele o que não se fez com milhares de outros que escaparam.
Sobre a violência, vítimas
e algozes - que trocam suas posições, ao longo da vida, com frequências maiores
do que se imagina - não podem fazer muito mais do que conhecer o processo em
que estão envolvidos, para então se libertarem de suas contradições e de seu
atavismo.
As medidas de ordem legal e
administrativa estão, como se sabe, circunscritas a uma reorganização do
aparelho policial e esbarram nas dificuldades burocrático-orçamentárias que tem
força para adiar todas as decisões, inclusive as indispensáveis. Mas esse
aspecto é de certa forma, mecânico.
A vasta realidade da
violência é suscetível de ser entendida quando certos artifícios são afastados
do caminho dessa compreensão. A tarefa começa em cada homem, na descoberta da
violência existente em cada pessoa, problema às vezes acessível aos outros, mas
de difícil transposição para o próprio indivíduo.
O problema é conhecido dos
que não ignoram tudo a respeito de si próprios. O grande ato violento é o mesmo
impulso violento que se manifesta no cotidiano, e que pode ser disfarçado com
um simples pensamento.
Os grandes criminosos que
nunca cometeram um crime são numerosos, estão em toda parte, enchem as ruas, as
salas, os escritórios, os lares.
São pacientes psiquiátricos
e também psiquiatras, são poderosos e humildes, extrovertidos e introvertidos,
têm alguma noção de sua realidade ou vivem em total ignorância a respeito.
Tem o tremendo potencial
dos que perpetraram às maiores violências, e apenas não puxaram seu gatilho,
não apertaram seu botão, não aceleraram seu carro em determinado momento.
Denunciar uma parte da
humanidade como violenta equivale a eleger uma outra parte como imune à
violência, quando a mente é uma só, a cultura é a mesma, os condicionamentos se
equivalem.
O homem comum, não importa
que rótulos tenham colecionado e o que tenha de fato feito na vida, tem de
começar por si próprio, com a humildade característica de quem quer saber e
confessa que nada sabe ainda. Esse é o grande desafio.
A atitude mais comum quando
se trata do assunto é o distanciamento crítico, o julgamento pessoal, a
constatação da violência como coisa que ocorre aos outros, e que deve ser
classificada, denominada, esconjurada.
Essa colocação não é apenas
um erro de perspectiva, mas revela uma tática sutilíssima da mente humana, que
visa situar "fora de si mesma" as atitudes reprovadas e os defeitos
rejeitados.
A trucagem pode ser
descoberta imediatamente quando temos interesse verdadeiro no assunto. A
violência não é alguma coisa dos outros, algo assim que acontece fora de mim e
só posso encontrar na rua, nos jornais, nos comentários, nas novelas.
O único modo de flagrar o
fato é aqui e agora, pensando, desejando, agindo e vivendo violentamente, ainda
que no mornidão aparente de um dia comum.
Os depoimentos mostrados na
sondagem de opinião revelaram rostos cansados ou congestionados pela raiva,
famintos dessa forma complexa de violência que se exerce em nome do combate à
violência.
A justiça com sabor de
vingança é um exercício antigo, que não perdeu sua fascinação para muita
gente.
Os homens continuam usando
pretextos elevados e motivos nobres para cometer suas velhas abjeções que
antigamente dispensavam justificativas.
No século XXI essa mentira
ganhou uma certa dignidade aperfeiçoada em proveito político. Os mais altos
ideais têm sido invocados para abonar as vilanias mais sórdidas, e pouca gente
se incomoda com isso.
Quando esses pretextos não
estão disponíveis, situamos os males da época nos outros, elegemos culpados,
batemos, queimamos e linchamos o que, se não nos satisfaz plenamente, pelo
menos nos deixa perfeitamente a salvo.
Luiz Carlos Lisboa - Do
Livro o Som do Silêncio