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domingo, novembro 20, 2022

Desenredo

Grandes admirações me causam os navios e a letra de certas pessoas que esforço por imitar.

Dos meus, só eu conheço o mar.

Conto e reconto, eles dizem ‘anh’.

E continuam cercando o galinheiro de tela.

Falo de espuma, do tamanho cansativo das águas, eles nem lembram que tem o Quênia, nem de leve adivinham que estou pensando em Tanzânia.

Afainosos me mostram o lote: aqui vai ser a cozinha, logo ali a horta de couve.
Não sei o que fazer com o litoral.

Fazia tarde bonita quando me inseri na janela, entre meus tios, e vi o homem com a braguilha aberta, o pé de rosa-doida enjerizado de rosas.

Horas e horas conversamos inconscientemente em português como se fora está a única língua do mundo.

Antes de depois da fé eu pergunto cadê os meus que se foram, porque sou humana, com capricho tampo o restinho de molho na panela.

Saberemos viver uma vida melhor que esta, quando mesmo chorando é tão bom estarmos juntos?

Sofrer não é em língua nenhuma.

Sofri e sofro em Minas Gerais e na beira do oceano.

Estarreço de estar viva. Ó luar do sertão, ó matas que não preciso ver pra me perder, ó cidades grandes, estados do Brasil que amo como se os tivesse inventado.

Ser brasileira me determina de modo emocionante e isto, que posso chamar de destino, sem pecar, descansa meu bem-querer.

Tudo junto é inteligível demais e eu não suporto.

Valha-me noite que me cobre de sono.

O pensamento da morte não se acostuma comigo.

Estremecerei de susto até dormir.

E, no entanto, é tudo tão pequeno.

Para o desejo do meu coração o mar é uma gota.

Adélia Prado



 

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