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segunda-feira, outubro 16, 2023

Animais com cérebros mais simples são menos sencientes?


 

Uma visão por vezes defendida é a de que os animais que possuem cérebros mais simples são "menos sencientes" do que animais que possuem cérebros mais complexos.

Pela mesma razão, também é defendido que há estágios na vida de um mesmo indivíduo em que ele é menos senciente, como no caso de um feto já senciente (em comparação à depois de nascer) e em casos de demência.

Quem adota essa visão normalmente defende também que, por isso, estaria justificado hierarquizar a consideração moral devida aos animais: acima os humanos, depois os outros primatas, depois os outros mamíferos, e assim por diante.

Essa visão também é utilizada para defender que devemos uma consideração maior a adultos do que a filhotes. Entretanto, essa visão confunde três conceitos distintos: senciência, valência e cognição. Vejamos:

Senciência

A senciência é a capacidade de ter experiências. É a diferença entre ser algo e ser alguém. Um sapato é algo porque não é capaz de experiências, não tem uma consciência.

Não há o ponto de vista do sapato. Já o que há de comum entre um humano, uma galinha, um peixe e uma abelha é que são sencientes: há alguém "dentro" daqueles corpos, possuem consciência.

Nesse sentido, senciência é uma questão binária: ou se é senciente, ou não se é. Não há graus do quanto se é uma coisa ou do quanto se é alguém. Um ser com um cérebro muito simples é tão alguém quanto é um ser com um cérebro muito complexo.

Valência

O que existe são graus de valência, que dizem respeito ao quão positivas ou negativas são as experiências. Por exemplo, se bato de leve meu braço na parede, terei uma sensação de dor leve, mas, se quebrou uma perna, terei uma dor intensa.

Entretanto, isso não implica que, ao compararmos as sensações que dois tipos de seres estão sentindo, sempre um deles terá a sensação mais intensa.

Por exemplo, imaginemos que, certo dia, um humano quebra uma perna e um porco sofre um arranhão leve. Nesse caso, a sensação que o humano está sentido é mais intensa. Entretanto, suponha que no dia seguinte acontece o oposto. Nesse caso, a sensação que o porco sente é mais intensa.

É claro, é bastante possível que seres diferentes tenham intensidades de valência diferentes diante de um mesmo estímulo. Por exemplo, um tapa de mesma intensidade em um adulto e em um bebê provavelmente doerão muito mais no bebê (e isso é assim mesmo que os adultos tenham um grau de cognição maior).

Há animais que sentem de maneira mais intensa do que outros, diante de um mesmo estímulo, em todas as situações?

É possível, mas muito provavelmente de maneira contrária àquela pressuposta pela visão que estamos a discutir. Por razões evolutivas, é possível que cérebros menos complexos sintam de maneira mais intensa.

Vejamos por que:

Por pressão seletiva, é bastante possível que a valência seja mais intensa em estágios onde o animal não possui certas capacidades cognitivas desenvolvidas (por exemplo, quando são ainda filhotes, ou mesmo antes de nascerem ou de saírem dos ovos, desde que seu sistema nervoso já esteja formado).

Isso seria assim porque nesses estágios, como não possuem as capacidades cognitivas desenvolvidas ainda, a única motivação que teriam para o seu comportamento e aprendizado seria evitar experiências negativas e buscar experiências positivas.

Isso é especialmente verdadeiro no caso de animais precociais, pois precisam ser bastante ativos para poderem quebrar a casca e sair do ovo, e também para terem alguma chance de sobreviver após saírem do ovo, uma vez que na maioria das espécies ovíparas os filhotes não recebem cuidado parental.

Isto é, por pressão seletiva, é bastante possível que animais com capacidades cognitivas menos desenvolvidas sintam de maneira ainda mais intensa. Isso é assim tanto se compararmos adultos e filhotes de uma mesma espécie, quanto se compararmos animais de espécies diferentes.

Grau de cognição

Já o grau de cognição é outra coisa, completamente distinta. Diz respeito ao quão inteligente é determinado animal. Isso não torna um animal mais senciente do que outro.

Seres pouco inteligentes são tão "alguém" quanto são seres muito inteligentes. Vimos também que sua menor inteligência também não faz com que suas experiências sejam menos intensas.

Como vimos no parágrafo anterior, é possível que seja ainda mais intensa. Richard Ryder, criador do termo especismo, enfatiza esse ponto: "Suas experiências podem ser mais simples do que as nossas, mas serão menos intensas?

Talvez a dor primitiva que uma lagarta sente ao ser esmagada seja maior do que nossos sofrimentos mais sofisticados".

Claro, há certas formas de alguém ser prejudicado que dependem de sua capacidade cognitiva. Somente alguém que entende que vai morrer daqui a algumas horas é capaz de sofrer por antecipação à sua morte.

Somente seres que se lembram de acontecimentos negativos passados podem sofrer por conta disso. Entretanto, como ilustra o caso dos bebês, existem vários outros contextos onde é a menor capacidade cognitiva que implica no sofrimento maior. Em resumo, não há uma correlação necessária entre maior capacidade cognitiva e experiência mais intensa.

Dadas as razões apresentadas acima, parece não haver como justificar dar uma consideração menor a seres cognitivamente menos capazes, com base na alegação de que são "menos sencientes" pois, como vimos, tal alegação não parece se sustentar.

 

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