Uma
visão por vezes defendida é a de que os animais que possuem cérebros mais
simples são "menos sencientes" do que animais que possuem cérebros
mais complexos.
Pela
mesma razão, também é defendido que há estágios na vida de um mesmo indivíduo
em que ele é menos senciente, como no caso de um feto já senciente (em
comparação à depois de nascer) e em casos de demência.
Quem
adota essa visão normalmente defende também que, por isso, estaria justificado
hierarquizar a consideração moral devida aos animais: acima os humanos, depois
os outros primatas, depois os outros mamíferos, e assim por diante.
Essa
visão também é utilizada para defender que devemos uma consideração maior a
adultos do que a filhotes. Entretanto, essa visão confunde três conceitos distintos:
senciência, valência e cognição. Vejamos:
Senciência
A
senciência é a capacidade de ter experiências. É a diferença entre ser algo e
ser alguém. Um sapato é algo porque não é capaz de experiências, não tem uma
consciência.
Não há
o ponto de vista do sapato. Já o que há de comum entre um humano, uma galinha,
um peixe e uma abelha é que são sencientes: há alguém "dentro"
daqueles corpos, possuem consciência.
Nesse
sentido, senciência é uma questão binária: ou se é senciente, ou não se é. Não
há graus do quanto se é uma coisa ou do quanto se é alguém. Um ser com um
cérebro muito simples é tão alguém quanto é um ser com um cérebro muito
complexo.
Valência
O que
existe são graus de valência, que dizem respeito ao quão positivas ou negativas
são as experiências. Por exemplo, se bato de leve meu braço na parede, terei
uma sensação de dor leve, mas, se quebrou uma perna, terei uma dor intensa.
Entretanto,
isso não implica que, ao compararmos as sensações que dois tipos de seres estão
sentindo, sempre um deles terá a sensação mais intensa.
Por
exemplo, imaginemos que, certo dia, um humano quebra uma perna e um porco sofre
um arranhão leve. Nesse caso, a sensação que o humano está sentido é mais
intensa. Entretanto, suponha que no dia seguinte acontece o oposto. Nesse caso,
a sensação que o porco sente é mais intensa.
É
claro, é bastante possível que seres diferentes tenham intensidades de valência
diferentes diante de um mesmo estímulo. Por exemplo, um tapa de mesma
intensidade em um adulto e em um bebê provavelmente doerão muito mais no bebê
(e isso é assim mesmo que os adultos tenham um grau de cognição maior).
Há
animais que sentem de maneira mais intensa do que outros, diante de um mesmo
estímulo, em todas as situações?
É
possível, mas muito provavelmente de maneira contrária àquela pressuposta pela
visão que estamos a discutir. Por razões evolutivas, é possível que cérebros
menos complexos sintam de maneira mais intensa.
Vejamos
por que:
Por
pressão seletiva, é bastante possível que a valência seja mais intensa em
estágios onde o animal não possui certas capacidades cognitivas desenvolvidas
(por exemplo, quando são ainda filhotes, ou mesmo antes de nascerem ou de
saírem dos ovos, desde que seu sistema nervoso já esteja formado).
Isso
seria assim porque nesses estágios, como não possuem as capacidades cognitivas
desenvolvidas ainda, a única motivação que teriam para o seu comportamento e
aprendizado seria evitar experiências negativas e buscar experiências positivas.
Isso é
especialmente verdadeiro no caso de animais precociais, pois precisam ser
bastante ativos para poderem quebrar a casca e sair do ovo, e também para terem
alguma chance de sobreviver após saírem do ovo, uma vez que na maioria das
espécies ovíparas os filhotes não recebem cuidado parental.
Isto é,
por pressão seletiva, é bastante possível que animais com capacidades
cognitivas menos desenvolvidas sintam de maneira ainda mais intensa. Isso é
assim tanto se compararmos adultos e filhotes de uma mesma espécie, quanto se
compararmos animais de espécies diferentes.
Grau de
cognição
Já o
grau de cognição é outra coisa, completamente distinta. Diz respeito ao quão
inteligente é determinado animal. Isso não torna um animal mais senciente do
que outro.
Seres
pouco inteligentes são tão "alguém" quanto são seres muito
inteligentes. Vimos também que sua menor inteligência também não faz com que
suas experiências sejam menos intensas.
Como
vimos no parágrafo anterior, é possível que seja ainda mais intensa. Richard
Ryder, criador do termo especismo, enfatiza esse ponto: "Suas experiências
podem ser mais simples do que as nossas, mas serão menos intensas?
Talvez
a dor primitiva que uma lagarta sente ao ser esmagada seja maior do que nossos
sofrimentos mais sofisticados".
Claro,
há certas formas de alguém ser prejudicado que dependem de sua capacidade
cognitiva. Somente alguém que entende que vai morrer daqui a algumas horas é
capaz de sofrer por antecipação à sua morte.
Somente
seres que se lembram de acontecimentos negativos passados podem sofrer por
conta disso. Entretanto, como ilustra o caso dos bebês, existem vários outros
contextos onde é a menor capacidade cognitiva que implica no sofrimento maior.
Em resumo, não há uma correlação necessária entre maior capacidade cognitiva e
experiência mais intensa.
Dadas
as razões apresentadas acima, parece não haver como justificar dar uma
consideração menor a seres cognitivamente menos capazes, com base na alegação
de que são "menos sencientes" pois, como vimos, tal alegação não
parece se sustentar.
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