Propaganda

sábado, outubro 21, 2023

O pecado de todos!

 


Uma sondagem de opinião feita num programa de TV, e mostrada em pequenos e sucessivos instantâneos, revela uma série de rostos contraídos pedindo penas severas de tortura e morte, como remédio para a onda de assaltos e homicídios nas grandes cidades. 

O clima de insegurança e de revolta ante a impunidade foi o principal móvel dessa indignação generalizada. O que não foi talvez apreciado devidamente é o potencial de violência contido nos que clamavam por justiça e castigo. 

O homem comum foi atingido fundamente em sua tranquilidade, naquele território onde é indispensável garantir um mínimo de paz.  A perda da segurança desencadeia no homem sentimentos contraditórios e desperta uma energia que visa reconquistar seu oásis, sem o qual não vale a pena viver.

A revolta é compreensível, o cansaço também, mas os remédios sugeridos à autoridade são desproporcionais, inadequados e sintomáticos.

Na pesquisa as pessoas exigiam, no mínimo, a morte dos delinquentes. Muitos imaginavam suplícios variados, como esfolamento e amputação de membros.

As opiniões eram dadas com gravidade, e soavam como sentenças. Era vingança o que se pedia não a aplicação da lei ou a punição de um delito.

Mas não vem ao caso discutir a validade da pena de talião: o importante é examinar o tipo de impulso que levou tantas pessoas a pedir a morte e a tortura dos delinquentes que agem nas grandes capitais. 

Era a mesma violência, exatamente a mesma, que arma o braço dos assaltantes, prepara o furto e induz ao homicídio. Naquele instante, o mundo foi dividido entre ofensores e ofendidos, os segundos exigindo reparação imediata e cruenta de todas as ofensas recebidas.

Eram todos linchadores potenciais que pediam um culpado em suas mãos, para que se pudesse fazer com ele o que não se fez com milhares de outros que escaparam.

Sobre a violência, vítimas e algozes - que trocam suas posições, ao longo da vida, com frequências maiores do que se imagina - não podem fazer muito mais do que conhecer o processo em que estão envolvidos, para então se libertarem de suas contradições e de seu atavismo.

As medidas de ordem legal e administrativa estão, como se sabe, circunscritas a uma reorganização do aparelho policial e esbarram nas dificuldades burocrático-orçamentárias que tem força para adiar todas as decisões, inclusive as indispensáveis. Mas esse aspecto é de certa forma, mecânico. 

A vasta realidade da violência é suscetível de ser entendida quando certos artifícios são afastados do caminho dessa compreensão. A tarefa começa em cada homem, na descoberta da violência existente em cada pessoa, problema às vezes acessível aos outros, mas de difícil transposição para o próprio indivíduo.

O problema é conhecido dos que não ignoram tudo a respeito de si próprios. O grande ato violento é o mesmo impulso violento que se manifesta no cotidiano, e que pode ser disfarçado com um simples pensamento.

Os grandes criminosos que nunca cometeram um crime são numerosos, estão em toda parte, enchem as ruas, as salas, os escritórios, os lares.

São pacientes psiquiátricos e também psiquiatras, são poderosos e humildes, extrovertidos e introvertidos, têm alguma noção de sua realidade ou vivem em total ignorância a respeito.

Tem o tremendo potencial dos que perpetraram às maiores violências, e apenas não puxaram seu gatilho, não apertaram seu botão, não aceleraram seu carro em determinado momento.

Denunciar uma parte da humanidade como violenta equivale a eleger uma outra parte como imune à violência, quando a mente é uma só, a cultura é a mesma, os condicionamentos se equivalem. 

O homem comum, não importa que rótulos tenham colecionado e o que tenha de fato feito na vida, tem de começar por si próprio, com a humildade característica de quem quer saber e confessa que nada sabe ainda. Esse é o grande desafio.

A atitude mais comum quando se trata do assunto é o distanciamento crítico, o julgamento pessoal, a constatação da violência como coisa que ocorre aos outros, e que deve ser classificada, denominada, esconjurada.

Essa colocação não é apenas um erro de perspectiva, mas revela uma tática sutilíssima da mente humana, que visa situar "fora de si mesma" as atitudes reprovadas e os defeitos rejeitados. 

A trucagem pode ser descoberta imediatamente quando temos interesse verdadeiro no assunto. A violência não é alguma coisa dos outros, algo assim que acontece fora de mim e só posso encontrar na rua, nos jornais, nos comentários, nas novelas.

O único modo de flagrar o fato é aqui e agora, pensando, desejando, agindo e vivendo violentamente, ainda que no mornidão aparente de um dia comum.

Os depoimentos mostrados na sondagem de opinião revelaram rostos cansados ou congestionados pela raiva, famintos dessa forma complexa de violência que se exerce em nome do combate à violência.

A justiça com sabor de vingança é um exercício antigo, que não perdeu sua fascinação para muita gente. 

Os homens continuam usando pretextos elevados e motivos nobres para cometer suas velhas abjeções que antigamente dispensavam justificativas.

No século XXI essa mentira ganhou uma certa dignidade aperfeiçoada em proveito político. Os mais altos ideais têm sido invocados para abonar as vilanias mais sórdidas, e pouca gente se incomoda com isso.

Quando esses pretextos não estão disponíveis, situamos os males da época nos outros, elegemos culpados, batemos, queimamos e linchamos o que, se não nos satisfaz plenamente, pelo menos nos deixa perfeitamente a salvo.

Luiz Carlos Lisboa - Do Livro o Som do Silêncio

0 Comentários: