Vivendo
na Pobreza: A História de Carolina Maria de Jesus e a Persistência da Fome no
Brasil.
A fome
é um monstro de muitas cabeças que, ao longo da história, devora sonhos,
dignidade e esperança no Brasil. Um país de riquezas incalculáveis, com
abundância de água potável, terras férteis, uma fauna e flora exuberantes e um
subsolo cobiçado por nações do mundo inteiro, não deveria conviver com tamanha
tragédia.
Contudo,
a desigualdade social e a negligência histórica transformaram a pobreza extrema
em uma realidade cruel para milhões de brasileiros, como a escritora Carolina
Maria de Jesus tão vividamente retratou.
Carolina,
autora do icônico livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, narrou com
autenticidade e dor a sua vida na favela do Canindé, em São Paulo, nos anos
1950.
Mulher
negra, mãe solo de três filhos, ela sobrevivia catando papel e ferro nas ruas
para garantir o mínimo sustento. Sua obra, publicada em 1960, revelou ao mundo
a face mais crua da miséria: a privação de alimentos, a luta diária contra a
fome e a angústia de uma mãe que ouve o choro dos filhos pedindo comida,
enquanto ela mesma enfrenta o vazio no estômago.
Não há
como mensurar a dor de tal experiência, mas Carolina, com sua escrita visceral,
conseguiu traduzir esse sofrimento em palavras que ecoam até hoje.
Um
trecho marcante de Quarto de Despejo, datado de 13 de maio de 1958, ilustra a
brutalidade dessa realidade:
"Hoje
amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que
comemoramos a libertação dos escravos. [...] Nas prisões, os negros eram os
bodes expiatórios. Mas os brancos agora são mais cultos. Não nos tratam com
desprezo. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam felizes.
Continua
chovendo. Eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os
meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no
senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros, vou comprar arroz e
linguiça. [...] Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles veem as coisas
de comer, eles bradam:
– Viva a mamãe!
A
manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir. Dez minutos depois,
eles querem mais comida. [...] Choveu, esfriou. É o inverno que chega. No
inverno, a gente come mais. A Vera começou a pedir comida. Eu não tinha. Era a
reprise do espetáculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco
de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela
deu-me a banha e arroz. Eram 9 horas da noite quando comemos.
Assim,
no dia 13 de maio de 1958, eu lutava contra a escravatura atual - a fome!"
Esse
relato, escrito em um dia simbolicamente carregado - o da Abolição da
Escravatura -, expõe a ironia de uma liberdade incompleta. Carolina compara a
fome a uma nova forma de escravidão, uma corrente invisível que aprisiona
milhões de brasileiros, especialmente os negros, que continuavam marginalizados
mesmo décadas após a assinatura da Lei Áurea.
Sua
escrita não é apenas um desabafo, mas um grito de resistência, um testemunho de
quem viveu no abismo da pobreza e, ainda assim, encontrou na palavra uma forma
de lutar.
É
devastador constatar que, quase sete décadas após o relato de Carolina, a fome
persiste no Brasil. Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) indicam que, em 2022, cerca de 33 milhões de brasileiros
viviam em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, enfrentavam a fome.
Regiões
como o Norte e o Nordeste, especialmente em áreas rurais e sertões, sofrem
ainda mais com a falta de acesso a alimentos, infraestrutura precária e
ausência de políticas públicas eficazes.
A
situação é agravada pela burocracia, pela corrupção e pela exclusão digital,
que impedem que programas assistenciais, como o Bolsa Família, cheguem a todos
os necessitados.
No
interior do país, onde a tecnologia muitas vezes não penetra, comunidades
inteiras vivem à margem do progresso. A falta de conectividade dificulta o
cadastro em programas sociais, o acesso a informações e até a denúncia de
irregularidades.
Além
disso, a concentração fundiária e a ausência de investimentos em agricultura
familiar limitam a produção de alimentos em regiões que poderiam ser
autossuficientes.
Enquanto
isso, o Brasil continua sendo um dos maiores exportadores de commodities
agrícolas, como soja e carne, em um contraste gritante com a fome que assola
sua própria população.
A
história de Carolina Maria de Jesus não é apenas um registro do passado, mas um
espelho do presente. Sua luta contra a fome reflete a de tantas outras mães
que, hoje, enfrentam filas em busca de ossos para cozinhar ou dependem da
solidariedade de vizinhos para alimentar seus filhos.
A
indiferença social, que ela já apontava em seus escritos, parece ter se
intensificado em um mundo onde o individualismo muitas vezes supera a empatia.
No entanto, sua obra também nos lembra da força da resistência e da importância
de dar voz aos invisíveis.
Para
que o Brasil supere essa tragédia, é necessário mais do que programas
assistenciais. É preciso enfrentar as raízes da desigualdade: investir em
educação, saúde, infraestrutura e agricultura familiar; combater a corrupção; e
promover a inclusão digital e social.
Acima
de tudo, é fundamental resgatar a humanidade que Carolina tão eloquentemente
defendeu em suas palavras. Só assim poderemos sonhar com um país onde nenhuma
criança chore de fome e nenhuma mãe perca o hábito de sorrir.
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