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sábado, junho 29, 2024

Vivendo na pobreza - Dona Carolina Maria de Jesus



Carolina Maria de Jesus, grande escritora brasileira, folheia livros em sua biblioteca particular, montada em seu barraco, com obras encontradas no lixo


Vivendo na Pobreza: A História de Carolina Maria de Jesus e a Persistência da Fome no Brasil.

A fome é um monstro de muitas cabeças que, ao longo da história, devora sonhos, dignidade e esperança no Brasil. Um país de riquezas incalculáveis, com abundância de água potável, terras férteis, uma fauna e flora exuberantes e um subsolo cobiçado por nações do mundo inteiro, não deveria conviver com tamanha tragédia.

Contudo, a desigualdade social e a negligência histórica transformaram a pobreza extrema em uma realidade cruel para milhões de brasileiros, como a escritora Carolina Maria de Jesus tão vividamente retratou.

Carolina, autora do icônico livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, narrou com autenticidade e dor a sua vida na favela do Canindé, em São Paulo, nos anos 1950.

Mulher negra, mãe solo de três filhos, ela sobrevivia catando papel e ferro nas ruas para garantir o mínimo sustento. Sua obra, publicada em 1960, revelou ao mundo a face mais crua da miséria: a privação de alimentos, a luta diária contra a fome e a angústia de uma mãe que ouve o choro dos filhos pedindo comida, enquanto ela mesma enfrenta o vazio no estômago.

Não há como mensurar a dor de tal experiência, mas Carolina, com sua escrita visceral, conseguiu traduzir esse sofrimento em palavras que ecoam até hoje.

Um trecho marcante de Quarto de Despejo, datado de 13 de maio de 1958, ilustra a brutalidade dessa realidade:

"Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. [...] Nas prisões, os negros eram os bodes expiatórios. Mas os brancos agora são mais cultos. Não nos tratam com desprezo. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam felizes.

Continua chovendo. Eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros, vou comprar arroz e linguiça. [...] Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles veem as coisas de comer, eles bradam:
– Viva a mamãe!

A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir. Dez minutos depois, eles querem mais comida. [...] Choveu, esfriou. É o inverno que chega. No inverno, a gente come mais. A Vera começou a pedir comida. Eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Eram 9 horas da noite quando comemos.

Assim, no dia 13 de maio de 1958, eu lutava contra a escravatura atual - a fome!"

Esse relato, escrito em um dia simbolicamente carregado - o da Abolição da Escravatura -, expõe a ironia de uma liberdade incompleta. Carolina compara a fome a uma nova forma de escravidão, uma corrente invisível que aprisiona milhões de brasileiros, especialmente os negros, que continuavam marginalizados mesmo décadas após a assinatura da Lei Áurea.

Sua escrita não é apenas um desabafo, mas um grito de resistência, um testemunho de quem viveu no abismo da pobreza e, ainda assim, encontrou na palavra uma forma de lutar.

É devastador constatar que, quase sete décadas após o relato de Carolina, a fome persiste no Brasil. Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que, em 2022, cerca de 33 milhões de brasileiros viviam em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, enfrentavam a fome.

Regiões como o Norte e o Nordeste, especialmente em áreas rurais e sertões, sofrem ainda mais com a falta de acesso a alimentos, infraestrutura precária e ausência de políticas públicas eficazes.

A situação é agravada pela burocracia, pela corrupção e pela exclusão digital, que impedem que programas assistenciais, como o Bolsa Família, cheguem a todos os necessitados.

No interior do país, onde a tecnologia muitas vezes não penetra, comunidades inteiras vivem à margem do progresso. A falta de conectividade dificulta o cadastro em programas sociais, o acesso a informações e até a denúncia de irregularidades.

Além disso, a concentração fundiária e a ausência de investimentos em agricultura familiar limitam a produção de alimentos em regiões que poderiam ser autossuficientes.

Enquanto isso, o Brasil continua sendo um dos maiores exportadores de commodities agrícolas, como soja e carne, em um contraste gritante com a fome que assola sua própria população.

A história de Carolina Maria de Jesus não é apenas um registro do passado, mas um espelho do presente. Sua luta contra a fome reflete a de tantas outras mães que, hoje, enfrentam filas em busca de ossos para cozinhar ou dependem da solidariedade de vizinhos para alimentar seus filhos.

A indiferença social, que ela já apontava em seus escritos, parece ter se intensificado em um mundo onde o individualismo muitas vezes supera a empatia. No entanto, sua obra também nos lembra da força da resistência e da importância de dar voz aos invisíveis.

Para que o Brasil supere essa tragédia, é necessário mais do que programas assistenciais. É preciso enfrentar as raízes da desigualdade: investir em educação, saúde, infraestrutura e agricultura familiar; combater a corrupção; e promover a inclusão digital e social.

Acima de tudo, é fundamental resgatar a humanidade que Carolina tão eloquentemente defendeu em suas palavras. Só assim poderemos sonhar com um país onde nenhuma criança chore de fome e nenhuma mãe perca o hábito de sorrir.

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