Quem matou Abel? Seu próprio irmão: Caim.
Em Gênesis 4:1–16, somos apresentados ao
primeiro drama fraterno da humanidade. Caim, primogênito de Adão e Eva, oferece
a Deus um sacrifício fruto do solo; Abel, seu irmão mais novo, apresenta as
primícias do seu rebanho.
O texto bíblico não se detém em detalhes
técnicos sobre a rejeição da oferta de Caim, mas sugere que a diferença não
está apenas no objeto oferecido, e sim na disposição interior de cada um.
A rejeição desperta em Caim um sentimento
corrosivo: a inveja. Advertido por Deus - “o pecado jaz à porta” -, ele ignora
o alerta, atrai Abel para o campo e o mata, cometendo o primeiro homicídio da
história humana. Confrontado, responde com frieza e ironia: “Sou eu o guardador
do meu irmão?”
Como consequência, Caim é condenado a vagar
pela terra, afastado do solo que antes cultivava. Paradoxalmente, Deus não o abandona
completamente: coloca nele um sinal para que não seja morto, revelando que o
juízo divino não exclui a misericórdia. Ainda assim, Abel permanece como a
primeira vítima inocente da violência humana.
Quem vendeu José como escravo? Seus próprios irmãos.
Em Gênesis 37, José, filho amado de Jacó,
torna-se alvo da hostilidade dos irmãos. Seus sonhos proféticos - nos quais
eles se curvam diante dele - e a famosa túnica colorida intensificam o ciúme e
o ressentimento.
Inicialmente, os irmãos planejam
assassiná-lo, mas acabam optando por vendê-lo como escravo por vinte moedas de
prata a mercadores ismaelitas a caminho do Egito.
O que parece uma tragédia definitiva se
transforma, ao longo do tempo, em um dos maiores exemplos de providência divina
da Bíblia. José passa por humilhações, prisão injusta e esquecimento, mas é
elevado por Deus ao cargo de governador do Egito (Gênesis 41).
Anos depois, durante uma grande fome, ele
salva sua própria família e declara uma das frases mais emblemáticas das
Escrituras: “Vós intentastes o mal contra mim, mas Deus o tornou em bem” (Gênesis
50:20). Aqui, a traição fraterna se converte em instrumento de salvação
coletiva.
Quem expulsou Jefté? Seus meio-irmãos.
Em Juízes 11:1-11, Jefté é apresentado como
um guerreiro valente, mas rejeitado por sua origem: filho de Gileade com uma
prostituta. Os filhos legítimos do pai o expulsam, afirmando que ele não teria
direito à herança. Marginalizado, Jefté foge para a terra de Tob, onde se torna
líder de homens igualmente rejeitados.
Quando os amonitas ameaçam Israel, os mesmos
que o expulsaram recorrem a ele. Jefté aceita liderar o povo, vence a batalha e
torna-se juiz de Israel por seis anos. O excluído transforma-se em libertador,
revelando mais uma vez o padrão bíblico: Deus frequentemente escolhe aqueles
que a família e a sociedade descartam.
Quem sentiu inveja de Davi? Primeiro seus irmãos, depois o rei Saul.
Embora o principal perseguidor de Davi seja o
rei Saul (1 Samuel 18:6–9), a rejeição começa dentro de casa. Quando Davi
visita o campo de batalha contra os filisteus, seu irmão mais velho, Eliabe, o
acusa de arrogância e irresponsabilidade (1 Samuel 17:28).
Davi, o caçula pastor, é ungido rei por
Samuel, derrotando Golias não com força militar, mas com fé. Perseguido, traído
e forçado a viver como fugitivo, ele é protegido por Deus e, no tempo certo,
elevado ao trono, tornando-se o maior rei de Israel e ancestral direto de Jesus
segundo a tradição cristã.
Quem não se alegrou com a volta do filho pródigo? O irmão mais velho.
Na parábola narrada por Jesus em Lucas 15:11-32,
o conflito fraterno assume uma dimensão espiritual. O filho mais novo
desperdiça a herança, arrepende-se e retorna. O pai o recebe com festa e
misericórdia. O irmão mais velho, porém, reage com indignação, ressentido pela
graça concedida ao outro.
A resposta do pai revela o coração da
parábola: “Era justo alegrarmo-nos, porque este teu irmão estava morto e
reviveu.”
Aqui, a inveja não gera morte física, mas
revela uma distância interior: a incapacidade de aceitar a misericórdia divina
quando ela beneficia o outro.
Outros conflitos fraternos nas Escrituras
A Bíblia é marcada por rivalidades entre
irmãos, quase sempre ligadas a favoritismo, herança ou bênção: Esaú e Jacó (Gênesis
27-33): Jacó engana o pai e rouba a bênção do primogênito. Esaú planeja
matá-lo. Anos depois, há reconciliação.
Absalão e Amnom (2 Samuel 13): Absalão mata o
meio-irmão para vingar a violência sofrida por sua irmã Tamar, desencadeando
uma rebelião contra o próprio pai, Davi.
A reflexão central: à exceção de Abel
Há um padrão claro: aqueles que são
rejeitados, traídos ou feridos por seus irmãos sofrem intensamente, mas acabam
experimentando restauração, elevação ou redenção em vida. Menos Abel.
Abel é a exceção trágica. Sua morte não é
revertida neste mundo. No entanto, teologicamente, ele não é esquecido. Em Hebreus
11:4, Abel é apresentado como o primeiro mártir da fé, e em Hebreus 12:24, seu
sangue é mencionado como um clamor por justiça, apontando simbolicamente para o
sangue de Cristo.
Enquanto José, Jefté e Davi são restaurados
na história, Abel é exaltado na eternidade. Seu testemunho atravessa os séculos
como alerta contra a inveja -
“O coração em paz dá vida ao corpo, mas a inveja apodrece os ossos” (Provérbios
14:30).
Conclusão
As Escrituras não romantizam a violência fraterna,
mas a expõem como uma das expressões mais antigas e devastadoras do pecado
humano. Ainda assim, afirmam que Deus permanece soberano, capaz de transformar
traições em instrumentos de redenção - mesmo quando a justiça parece tardar.
E, ironicamente, talvez seja exatamente isso
que incomode no relato de Abel:
não há justificativa possível para sua morte.
O texto bíblico não cria um enredo para
absolver Caim - ao contrário, deixa o crime nu, injustificável e eterno como
advertência. A pergunta final permanece aberta, atravessando gerações: como
lidamos com o ciúme, o ressentimento e a graça nas nossas próprias relações?
Porque, no fim, Deus sempre tem a última
palavra - mas nós escolhemos como escrevemos as primeiras linhas.

















