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quarta-feira, dezembro 31, 2025

Matar Sem Punhal: As Mortes que a Lei Tolera


 

“Há muitas maneiras de matar uma pessoa: cravando um punhal, tirando o pão, não tratando sua doença, condenando-a à miséria, fazendo-a trabalhar até arrebentar, impelindo-a ao desespero, enviando-a para a guerra etc. Só a primeira é proibida por nosso Estado.”

Essa contundente afirmação é atribuída ao dramaturgo, poeta e pensador alemão Bertolt Brecht (1898-1956), um dos maiores expoentes do teatro épico e do pensamento marxista no século XX.

Embora a frase circule em diferentes versões - muitas vezes apresentada como poema curto ou aforismo -, seu conteúdo reflete fielmente o núcleo da crítica brechtiana à hipocrisia moral do Estado e às violências estruturais do capitalismo.

Brecht dedicou grande parte de sua obra a desmontar a ideia de que a violência se limita ao ato direto e individual. Para ele, matar não é apenas ferir com uma arma; é também negar condições mínimas de existência, retirar direitos, explorar até o esgotamento, abandonar à doença, à fome ou ao desespero. Trata-se de uma violência silenciosa, cotidiana e institucionalizada, invisível aos códigos penais, mas devastadora em seus efeitos.

Exilado durante o regime nazista, Brecht foi crítico implacável tanto do fascismo quanto das desigualdades profundas geradas pelo sistema capitalista. Em suas peças, poemas e ensaios, ele demonstrou como o Estado condena severamente o homicídio individual - porque este ameaça à ordem pública -, enquanto tolera ou legitima mortes em massa provocadas pela exploração econômica, pela negligência social ou por guerras travadas em nome de interesses políticos e econômicos.

Assim, o que é considerado crime não depende do sofrimento causado, mas de quem sofre e de quem se beneficia. Essa concepção atravessa sua produção das décadas de 1930 e 1940, período marcado pela Grande Depressão, pela ascensão do nazismo e pelas tensões que culminariam na Segunda Guerra Mundial.

Obras como Mãe Coragem e Seus Filhos expõem a lógica perversa da guerra como negócio, em que vidas humanas são reduzidas a números e perdas “necessárias”.

Nos poemas escritos durante o exílio em Svendborg, Brecht observa uma Europa em colapso, onde Estados enviavam milhões à morte nas frentes de batalha enquanto ignoravam a fome e a miséria de suas próprias populações.

Mais de meio século após sua morte, a crítica permanece inquietantemente atual. Em um mundo que produz alimentos suficientes para todos, milhões ainda morrem vítimas da fome e da pobreza extrema, consequência direta de desigualdades econômicas persistentes e políticas que priorizam o lucro em detrimento da dignidade humana.

O acesso à saúde continua desigual: cortes em sistemas públicos e crises sanitárias recentes demonstraram como a omissão estatal atinge, sobretudo, os mais vulneráveis.

No campo do trabalho, jornadas exaustivas, condições precárias e a pressão constante por produtividade resultam em adoecimento físico e psicológico, levando a mortes prematuras que raramente são reconhecidas como violência social.

O crescimento de casos de sofrimento extremo e autodestruição em diferentes países revela o impacto do desemprego, do endividamento e da ausência de redes de apoio, fenômenos que não surgem do acaso, mas de estruturas econômicas excludentes.

As guerras, por sua vez, seguem como a expressão mais explícita dessa lógica. Conflitos contemporâneos continuam enviando jovens à morte, muitas vezes sob discursos de patriotismo ou segurança, enquanto os interesses geopolíticos e econômicos que os sustentam permanecem ocultos. A condenação moral da violência aparece, assim, de forma seletiva.

Ao afirmar que apenas o punhal é proibido, Brecht não relativiza o assassinato direto; ele expõe uma contradição fundamental: o verdadeiro crime não é apenas o ato individual, mas o sistema que produz e normaliza as outras formas de morte.

Sua reflexão é um convite incômodo à consciência crítica, à recusa da indiferença e à compreensão de que a justiça social não se limita à punição de indivíduos, mas exige a transformação das estruturas que tornam a morte cotidiana aceitável.

Mais do que uma denúncia, essa frase permanece como um chamado à responsabilidade coletiva - e à ação - diante das injustiças que, embora legalizadas, continuam a ceifar vidas em silêncio. 

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