“Há muitas maneiras de
matar uma pessoa: cravando um punhal, tirando o pão, não tratando sua doença,
condenando-a à miséria, fazendo-a trabalhar até arrebentar, impelindo-a ao
desespero, enviando-a para a guerra etc. Só a primeira é proibida por nosso Estado.”
Essa contundente
afirmação é atribuída ao dramaturgo, poeta e pensador alemão Bertolt Brecht (1898-1956), um dos maiores
expoentes do teatro épico e do pensamento marxista no século XX.
Embora a frase circule em diferentes versões -
muitas vezes apresentada como poema curto ou aforismo -, seu conteúdo reflete
fielmente o núcleo da crítica brechtiana à hipocrisia moral do Estado e às
violências estruturais do capitalismo.
Brecht dedicou
grande parte de sua obra a desmontar a ideia de que a violência se limita ao
ato direto e individual. Para ele, matar não é apenas ferir com uma arma; é
também negar condições mínimas de existência,
retirar direitos, explorar até o esgotamento, abandonar à doença, à fome ou ao
desespero. Trata-se de uma violência silenciosa, cotidiana e institucionalizada,
invisível aos códigos penais, mas devastadora em seus efeitos.
Exilado durante
o regime nazista, Brecht foi crítico implacável tanto do fascismo quanto das
desigualdades profundas geradas pelo sistema capitalista. Em suas peças, poemas
e ensaios, ele demonstrou como o Estado condena severamente o homicídio
individual - porque este ameaça à ordem pública -, enquanto tolera ou legitima
mortes em massa provocadas pela exploração econômica, pela negligência social
ou por guerras travadas em nome de interesses políticos e econômicos.
Assim, o que é considerado crime não depende
do sofrimento causado, mas de quem sofre e de quem se beneficia. Essa concepção
atravessa sua produção das décadas de 1930 e 1940, período marcado pela Grande Depressão, pela ascensão do nazismo
e pelas tensões que culminariam na Segunda Guerra Mundial.
Obras como Mãe Coragem e Seus Filhos
expõem a lógica perversa da guerra como negócio, em que vidas humanas são
reduzidas a números e perdas “necessárias”.
Nos poemas escritos durante o exílio em
Svendborg, Brecht observa uma Europa em colapso, onde Estados enviavam milhões
à morte nas frentes de batalha enquanto ignoravam a fome e a miséria de suas
próprias populações.
Mais de meio
século após sua morte, a crítica permanece inquietantemente atual. Em um mundo
que produz alimentos suficientes para todos, milhões
ainda morrem vítimas da fome e da pobreza extrema, consequência
direta de desigualdades econômicas persistentes e políticas que priorizam o
lucro em detrimento da dignidade humana.
O acesso à saúde continua desigual: cortes em
sistemas públicos e crises sanitárias recentes demonstraram como a omissão
estatal atinge, sobretudo, os mais vulneráveis.
No campo do
trabalho, jornadas exaustivas, condições precárias e a pressão constante por
produtividade resultam em adoecimento físico e psicológico, levando a mortes
prematuras que raramente são reconhecidas como violência social.
O crescimento de casos de sofrimento extremo
e autodestruição em diferentes países revela o impacto do desemprego, do
endividamento e da ausência de redes de apoio, fenômenos que não surgem do
acaso, mas de estruturas econômicas excludentes.
As guerras, por
sua vez, seguem como a expressão mais explícita dessa lógica. Conflitos contemporâneos
continuam enviando jovens à morte, muitas vezes sob discursos de patriotismo ou
segurança, enquanto os interesses geopolíticos e econômicos que os sustentam
permanecem ocultos. A condenação moral da violência aparece, assim, de forma
seletiva.
Ao afirmar que
apenas o punhal é proibido, Brecht não relativiza o assassinato direto; ele
expõe uma contradição fundamental: o verdadeiro crime não
é apenas o ato individual, mas o sistema que produz e normaliza as outras
formas de morte.
Sua reflexão é um convite incômodo à
consciência crítica, à recusa da indiferença e à compreensão de que a justiça
social não se limita à punição de indivíduos, mas exige a transformação das
estruturas que tornam a morte cotidiana aceitável.
Mais do que uma denúncia, essa frase permanece como um chamado à responsabilidade coletiva - e à ação - diante das injustiças que, embora legalizadas, continuam a ceifar vidas em silêncio.









0 Comentários:
Postar um comentário