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domingo, dezembro 28, 2025

Irmãos


 Quem matou Abel? Seu próprio irmão: Caim.

Em Gênesis 4:1–16, somos apresentados ao primeiro drama fraterno da humanidade. Caim, primogênito de Adão e Eva, oferece a Deus um sacrifício fruto do solo; Abel, seu irmão mais novo, apresenta as primícias do seu rebanho.

O texto bíblico não se detém em detalhes técnicos sobre a rejeição da oferta de Caim, mas sugere que a diferença não está apenas no objeto oferecido, e sim na disposição interior de cada um.

A rejeição desperta em Caim um sentimento corrosivo: a inveja. Advertido por Deus - “o pecado jaz à porta” -, ele ignora o alerta, atrai Abel para o campo e o mata, cometendo o primeiro homicídio da história humana. Confrontado, responde com frieza e ironia: “Sou eu o guardador do meu irmão?”

Como consequência, Caim é condenado a vagar pela terra, afastado do solo que antes cultivava. Paradoxalmente, Deus não o abandona completamente: coloca nele um sinal para que não seja morto, revelando que o juízo divino não exclui a misericórdia. Ainda assim, Abel permanece como a primeira vítima inocente da violência humana.

Quem vendeu José como escravo? Seus próprios irmãos.

Em Gênesis 37, José, filho amado de Jacó, torna-se alvo da hostilidade dos irmãos. Seus sonhos proféticos - nos quais eles se curvam diante dele - e a famosa túnica colorida intensificam o ciúme e o ressentimento.

Inicialmente, os irmãos planejam assassiná-lo, mas acabam optando por vendê-lo como escravo por vinte moedas de prata a mercadores ismaelitas a caminho do Egito.

O que parece uma tragédia definitiva se transforma, ao longo do tempo, em um dos maiores exemplos de providência divina da Bíblia. José passa por humilhações, prisão injusta e esquecimento, mas é elevado por Deus ao cargo de governador do Egito (Gênesis 41).

Anos depois, durante uma grande fome, ele salva sua própria família e declara uma das frases mais emblemáticas das Escrituras: “Vós intentastes o mal contra mim, mas Deus o tornou em bem” (Gênesis 50:20). Aqui, a traição fraterna se converte em instrumento de salvação coletiva.

Quem expulsou Jefté? Seus meio-irmãos.

Em Juízes 11:1-11, Jefté é apresentado como um guerreiro valente, mas rejeitado por sua origem: filho de Gileade com uma prostituta. Os filhos legítimos do pai o expulsam, afirmando que ele não teria direito à herança. Marginalizado, Jefté foge para a terra de Tob, onde se torna líder de homens igualmente rejeitados.

Quando os amonitas ameaçam Israel, os mesmos que o expulsaram recorrem a ele. Jefté aceita liderar o povo, vence a batalha e torna-se juiz de Israel por seis anos. O excluído transforma-se em libertador, revelando mais uma vez o padrão bíblico: Deus frequentemente escolhe aqueles que a família e a sociedade descartam.

Quem sentiu inveja de Davi? Primeiro seus irmãos, depois o rei Saul.

Embora o principal perseguidor de Davi seja o rei Saul (1 Samuel 18:6–9), a rejeição começa dentro de casa. Quando Davi visita o campo de batalha contra os filisteus, seu irmão mais velho, Eliabe, o acusa de arrogância e irresponsabilidade (1 Samuel 17:28).

Davi, o caçula pastor, é ungido rei por Samuel, derrotando Golias não com força militar, mas com fé. Perseguido, traído e forçado a viver como fugitivo, ele é protegido por Deus e, no tempo certo, elevado ao trono, tornando-se o maior rei de Israel e ancestral direto de Jesus segundo a tradição cristã.

Quem não se alegrou com a volta do filho pródigo? O irmão mais velho.

Na parábola narrada por Jesus em Lucas 15:11-32, o conflito fraterno assume uma dimensão espiritual. O filho mais novo desperdiça a herança, arrepende-se e retorna. O pai o recebe com festa e misericórdia. O irmão mais velho, porém, reage com indignação, ressentido pela graça concedida ao outro.

A resposta do pai revela o coração da parábola: “Era justo alegrarmo-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu.”

Aqui, a inveja não gera morte física, mas revela uma distância interior: a incapacidade de aceitar a misericórdia divina quando ela beneficia o outro.

Outros conflitos fraternos nas Escrituras

A Bíblia é marcada por rivalidades entre irmãos, quase sempre ligadas a favoritismo, herança ou bênção: Esaú e Jacó (Gênesis 27-33): Jacó engana o pai e rouba a bênção do primogênito. Esaú planeja matá-lo. Anos depois, há reconciliação.

Absalão e Amnom (2 Samuel 13): Absalão mata o meio-irmão para vingar a violência sofrida por sua irmã Tamar, desencadeando uma rebelião contra o próprio pai, Davi.

A reflexão central: à exceção de Abel

Há um padrão claro: aqueles que são rejeitados, traídos ou feridos por seus irmãos sofrem intensamente, mas acabam experimentando restauração, elevação ou redenção em vida. Menos Abel.

Abel é a exceção trágica. Sua morte não é revertida neste mundo. No entanto, teologicamente, ele não é esquecido. Em Hebreus 11:4, Abel é apresentado como o primeiro mártir da fé, e em Hebreus 12:24, seu sangue é mencionado como um clamor por justiça, apontando simbolicamente para o sangue de Cristo.

Enquanto José, Jefté e Davi são restaurados na história, Abel é exaltado na eternidade. Seu testemunho atravessa os séculos como alerta contra a inveja -
“O coração em paz dá vida ao corpo, mas a inveja apodrece os ossos” (Provérbios 14:30).

Conclusão

As Escrituras não romantizam a violência fraterna, mas a expõem como uma das expressões mais antigas e devastadoras do pecado humano. Ainda assim, afirmam que Deus permanece soberano, capaz de transformar traições em instrumentos de redenção - mesmo quando a justiça parece tardar.

E, ironicamente, talvez seja exatamente isso que incomode no relato de Abel:
não há justificativa possível para sua morte.

O texto bíblico não cria um enredo para absolver Caim - ao contrário, deixa o crime nu, injustificável e eterno como advertência. A pergunta final permanece aberta, atravessando gerações: como lidamos com o ciúme, o ressentimento e a graça nas nossas próprias relações?

Porque, no fim, Deus sempre tem a última palavra - mas nós escolhemos como escrevemos as primeiras linhas.

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