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quarta-feira, dezembro 31, 2025

A Piedade como Capital Político no Brasil


 

Em muitos países da América Latina - incluindo o Brasil - a influência religiosa permanece social e politicamente significativa, apesar da separação formal entre Estado e Igreja.

Nesse contexto, não é raro que políticos alcancem ou preservem o poder exibindo sinais públicos de piedade: participam de cultos e missas, contribuem para instituições de caridade, citam passagens bíblicas em discursos e, sobretudo, apresentam-se como “tementes a Deus”.

Trata-se de uma estratégia recorrente, enraizada em uma herança cultural profunda, inicialmente marcada pelo catolicismo histórico e, mais recentemente, pelo crescimento acelerado do evangelicalismo.

No caso brasileiro, é importante corrigir uma ideia comum, mas imprecisa: o Estado é oficialmente laico desde a Proclamação da República, em 1889. A separação entre Igreja e Estado foi estabelecida pelo Decreto nº 119-A, de 1890, e consagrada na Constituição de 1891, encerrando o catolicismo como religião oficial do Império.

Esse princípio foi reafirmado e fortalecido ao longo do século XX, culminando na Constituição de 1988, que proíbe o estabelecimento de cultos oficiais ou alianças privilegiadas com organizações religiosas (art. 19), ainda que permita colaborações em nome do interesse público.

Na América Latina, a laicidade seguiu trajetórias diversas. Enquanto países como o Uruguai adotaram uma separação rigorosa - a ponto de renomear feriados cristãos, como o “Dia da Família” em substituição ao Natal - outros, como Argentina, Bolívia e Costa Rica, ainda mantêm o catolicismo como religião oficial do Estado.

Essas variações revelam que a laicidade latino-americana, em muitos casos, é mais jurídica do que cultural. A história recente demonstra, contudo, que um político teísta - ou que se apresenta como tal - não é, por definição, mais ético, competente ou justo do que um ateu ou agnóstico.

A crença em Deus não imuniza ninguém contra práticas corruptas, autoritárias ou ineficientes. Escândalos políticos envolvendo figuras que se declaravam profundamente religiosas são abundantes e atravessam diferentes confissões e espectros ideológicos.

Ainda assim, em sociedades culturalmente conservadoras, a imagem pública de fé continua a conferir vantagens eleitorais significativas. No Brasil, onde aproximadamente metade da população ainda se declara católica e cerca de um terço evangélica, alianças com líderes religiosos podem mobilizar votos em bloco e influenciar decisivamente eleições.

O crescimento evangélico - que saltou de uma presença minoritária no final do século XX para mais de 30% da população nas últimas décadas - transformou o cenário político. Igrejas pentecostais e neopentecostais, como a Assembleia de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus, passaram a atuar de forma organizada, orientando seus fiéis sob lemas como “irmão vota em irmão”.

Acontecimentos recentes ilustram esse fenômeno de maneira eloquente. Nas eleições de 2018, Jair Bolsonaro construiu uma narrativa fortemente associada a valores religiosos e conservadores, incluindo seu batismo no rio Jordão e o slogan “Deus acima de todos”. O apoio evangélico foi decisivo para sua vitória, influenciando pautas como a oposição ao aborto e à chamada “ideologia de gênero”.

Em 2022, embora Luiz Inácio Lula da Silva tenha vencido o pleito, Bolsonaro manteve expressivo apoio entre evangélicos, enquanto o eleitorado católico mostrou-se mais dividido. Hoje Jair Bolsonaro está preso e enganado por maioria dos seus seguidores sem nenhuma proteção divina.

Eventos de grande visibilidade pública, como a Marcha para Jesus, tornaram-se espaços disputados por políticos de diferentes partidos e ideologias - inclusive integrantes do atual governo - evidenciando que a busca por legitimidade religiosa transcende alinhamentos políticos tradicionais.

No Congresso Nacional, a chamada Bancada Evangélica - ou “bancada bíblica” - cresceu de forma consistente, atuando na defesa de agendas morais conservadoras. Figuras como Damares Alves e Marco Feliciano tornaram-se símbolos dessa influência, enquanto setores do catolicismo conservador, ligados a movimentos como o Opus Dei ou à Renovação Carismática, também reforçam esse padrão de atuação.

Em síntese, embora o Brasil não seja mais um “Império sacralizado” do ponto de vista jurídico, a mentalidade social ainda tende a premiar a piedade pública. Manter boas relações com igrejas - sejam católicas ou evangélicas - e invocar Deus no discurso político continuam sendo estratégias eficazes para conquistar e preservar poder.

Isso não revela uma simples “mentalidade medieval”, mas sim uma sociedade em transição religiosa, marcada pelo pluralismo, na qual a fé permanece um capital simbólico e eleitoral de grande valor, mesmo sob um regime formalmente laico.

Avançar rumo a um debate público mais racional, ético e menos instrumentalizado exigiria investimento consistente em educação cívica, fortalecimento das instituições republicanas e, sobretudo, uma separação mais efetiva entre púlpito e palanque.

Somente assim a fé poderia ocupar seu espaço legítimo na esfera privada e comunitária, sem se converter em ferramenta de manipulação política.

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