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segunda-feira, dezembro 22, 2025

Novo Dilúvio



A Arca de Noé da Silva no Brasil Moderno

Um dia, o Senhor chamou Noé da Silva e ordenou-lhe:

- Dentro de seis meses, farei chover ininterruptamente durante 40 dias e 40 noites, até que todo o Brasil seja coberto pelas águas. Os maus serão destruídos, mas quero salvar os justos e um casal de cada espécie animal. Vai e constrói uma arca de madeira.

No tempo certo, os trovões deram o aviso e os relâmpagos cruzaram o céu. Noé da Silva chorava, ajoelhado no quintal de sua casa, quando ouviu a Voz do Senhor soar, retumbante, entre as nuvens:

- Onde está a arca, Noé?

- Perdoe-me, Senhor - suplicou o homem, com lágrimas nos olhos. - Fiz o que pude, mas encontrei dificuldades imensas. Primeiro, tentei obter uma licença da Prefeitura. Além das altas taxas para o alvará, pediram uma "contribuição voluntária" para a campanha de reeleição do prefeito.

Precisando de dinheiro, fui aos bancos pedir empréstimos. Não consegui, mesmo oferecendo juros altos - afinal, nem teriam como me cobrar depois do dilúvio!

O Corpo de Bombeiros exigiu um sistema completo de prevenção de incêndios na arca. Consegui contornar subornando um fiscal, mas aí vieram os problemas com o IBAMA para a extração da madeira.

Expliquei que eram ordens divinas, mas eles só queriam saber do "projeto de reflorestamento", do "plano de manejo sustentável" e de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) detalhado. Enquanto isso, o IBAMA descobriu os casais de animais que eu já havia recolhido no quintal.

Veio multa pesada, ameaça de prisão inafiançável por tráfico de fauna e, no fim, tive que "resolver" com o fiscal - que, aliás, desapareceu misteriosamente depois.

Quando finalmente resolvi começar a obra na raça, apareceu o CREA multando porque eu não tinha um engenheiro naval responsável técnico. Em seguida, o sindicato dos marceneiros exigiu contratação exclusiva de seus filiados, com garantia de emprego por pelo menos um ano - e plano de saúde vitalício.

A Receita Federal veio atrás, alegando "sinais exteriores de riqueza" pela quantidade de madeira estocada, e me autuou por sonegação presumida. Piorou quando a Secretaria de Meio Ambiente pediu o Relatório de Impacto Ambiental sobre a zona a ser inundada.

Mostrei o mapa do Brasil inteiro. Aí quiseram me internar num hospital psiquiátrico! Sorte que o INSS estava em greve na época. E não parou aí, Senhor.

Recentemente, para registrar os animais como "dependentes" e garantir algum benefício fiscal, tentei cadastrá-los no sistema do INSS. Descobri um esquema inteiro de fraudes em consignados: sindicatos e associações descontando valores indevidos de aposentados, num escândalo bilionário que a Polícia Federal chamou de "Farra do INSS".

Se até os velhinhos não escapam da burocracia e da corrupção, imagine eu, tentando salvar o mundo! Por fim, o Ministério Público abriu inquérito por lavagem de dinheiro, alegando que as doações para a arca pareciam "propinas disfarçadas". E o STF discutiu se o dilúvio violava direitos fundamentais de liberdade religiosa.

Noé da Silva terminou o relato chorando copiosamente. Mas, notando que o céu clareava e a chuva não vinha, perguntou, esperançoso:

- Senhor, não irás mais destruir o Brasil?

- Não! - respondeu a Voz dentre as nuvens, com um suspiro resignado. - Pelo que ouvi de ti, Noé, cheguei tarde demais. Alguém - ou melhor, muitos - já se encarregou de fazer isso há muito tempo. A burocracia, a corrupção e os escândalos infinitos já inundaram tudo!

Essa piada clássica, que circula há décadas, continua mais atual do que nunca. Em 2025, o Brasil registrou a pior nota histórica no Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional (34 pontos), com escândalos como desvios no INSS afetando milhões de aposentados e recordes de operações policiais contra o crime organizado.

A burocracia excessiva em licenças ambientais e construções ainda atrasa projetos por anos, alimentando o "jeitinho" e a impunidade. No fim, o humor amargo reflete uma realidade persistente: o maior dilúvio não vem do céu, mas dos sistemas que deveriam proteger o país.

domingo, dezembro 21, 2025

Hatie McDaniel - Atriz Negra Vencedora do Óscar em E o Vento Levou


 Hattie McDaniel: a primeira atriz negra a vencer o Oscar e sua luta contra o racismo em Hollywood

Hattie McDaniel (1895-1952) ocupa um lugar central na história do cinema americano. Em 1940, tornou-se a primeira pessoa negra a vencer um Oscar, ao receber o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante por sua interpretação de Mammy no clássico E o Vento Levou.

A conquista foi histórica, mas também expôs, de forma contundente, as profundas contradições e desigualdades raciais que marcavam Hollywood e a sociedade norte-americana da época.

A cerimônia do Oscar ocorreu no Hotel Ambassador, em Los Angeles, um local que mantinha uma política rígida de segregação racial, conhecida informalmente como “no blacks” (proibida a entrada de negros).

Hattie McDaniel só pôde comparecer graças à intervenção direta do produtor David O. Selznick. Mesmo assim, foi obrigada a sentar-se em uma mesa isolada, distante do restante do elenco branco do filme, incluindo Vivien Leigh e Clark Gable.

Sua presença, embora histórica, foi tolerada sob condições humilhantes, que evidenciavam o racismo institucionalizado daquele período. Além disso, McDaniel não recebeu uma estatueta tradicional, mas uma placa - formato utilizado então para as categorias coadjuvantes.

O símbolo de sua vitória, assim como a forma de sua participação na cerimônia, refletia o tratamento desigual dispensado a artistas negros, mesmo quando alcançavam feitos extraordinários.

A exclusão não se limitou à premiação. Na estreia mundial de E o Vento Levou, realizada em Atlanta em dezembro de 1939, Hattie McDaniel foi proibida de comparecer devido às leis de segregação racial da Geórgia.

Clark Gable, que nutria grande respeito por ela, ameaçou boicotar o evento caso McDaniel não fosse convidada. No entanto, a própria atriz o convenceu a comparecer, temendo que sua ausência prejudicasse o filme e agravasse ainda mais sua já frágil posição em Hollywood.

A carreira de McDaniel foi marcada por um paradoxo doloroso. Ela atuou em mais de 300 filmes, quase sempre interpretando personagens estereotipados - empregadas domésticas, criadas ou cozinheiras.

Esses papéis lhe garantiram visibilidade e sustento, mas também a colocaram no centro de intensos debates dentro da própria comunidade negra. Líderes como Walter White, da NAACP, criticavam-na por perpetuar imagens submissas e degradantes dos afro-americanos.

McDaniel, porém, defendia-se com pragmatismo e lucidez. Sua frase tornou-se célebre: “Prefiro interpretar uma criada por 700 dólares por semana do que ser uma por 7 dólares.” Para ela, aceitar aqueles papéis era uma estratégia de sobrevivência em uma indústria profundamente racista, que oferecia pouquíssimas oportunidades reais a artistas negros.

Além disso, acreditava que sua simples presença nas telas já representava uma forma de resistência e abertura de caminhos para gerações futuras. Apesar do sucesso e do reconhecimento público, Hattie McDaniel enfrentou dificuldades financeiras ao longo da vida, resultado do pagamento desigual, da instabilidade da carreira e da limitação de papéis disponíveis.

Ainda assim, foi pioneira também no rádio, tornando-se a primeira mulher negra a estrelar um programa semanal voltado ao grande público, The Beulah Show, em 1947 - outro marco em um meio igualmente excludente.

Hattie McDaniel faleceu em 26 de outubro de 1952, aos 57 anos, vítima de câncer de mama. Em seu testamento, expressou o desejo de que sua placa do Oscar fosse doada à Howard University, uma instituição historicamente negra.

A peça foi exibida por alguns anos, mas desapareceu misteriosamente entre as décadas de 1960 e 1970, possivelmente durante protestos estudantis. Seu paradeiro permanece desconhecido até hoje, tornando-se um símbolo adicional da negligência histórica com o legado de artistas negros.

Em 2023, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas tentou reparar parcialmente essa lacuna ao entregar à Howard University uma réplica da premiação, atualizada para o formato de estatueta, em uma cerimônia simbólica intitulada “Hattie’s Come Home”.

O gesto representou um reconhecimento tardio da importância de McDaniel para a história do cinema. Outro desejo frustrado da atriz foi ser enterrada no Hollywood Forever Cemetery (então Hollywood Memorial Park), local onde repousam inúmeras estrelas da indústria cinematográfica.

O pedido foi negado devido à segregação racial vigente. Hattie McDaniel acabou sepultada no Angelus-Rosedale Cemetery. Somente em 1999, décadas após sua morte, o Hollywood Forever ergueu um cenotáfio - um monumento memorial - às margens de um lago, reconhecendo oficialmente a injustiça histórica cometida.

O legado de Hattie McDaniel é complexo e profundamente humano. Ela quebrou barreiras em plena era das leis de Jim Crow, abrindo espaço para artistas negros em uma indústria que os marginalizava sistematicamente.

Ao mesmo tempo, sua trajetória revela os limites impostos pelo racismo estrutural, que condicionava escolhas, silenciava alternativas e cobrava preços elevados por cada conquista.

Seu triunfo ecoou ao longo das décadas e inspirou atrizes como Mo’Nique, vencedora do Oscar em 2010, que a homenageou emocionadamente em seu discurso de aceitação.

McDaniel recebeu estrelas na Calçada da Fama de Hollywood e foi incluída no Hall da Fama de Cineastas Negros, consolidando-se como um ícone de resiliência, coragem e pioneirismo, uma mulher que, mesmo em um sistema hostil, escreveu seu nome na história.

Da Fartura Coletiva ao Bombardeio: A História do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto


 

No interior do Ceará, no município do Crato, na região do Cariri, existiu uma das experiências comunitárias mais singulares e trágicas da história social brasileira: o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto.

A comunidade surgiu em 1926, quando o beato José Lourenço Gomes da Silva, peregrino paraibano, negro e analfabeto, recebeu terras cedidas por Padre Cícero Romão Batista com o objetivo de abrigar romeiros, flagelados da seca e trabalhadores expulsos de suas terras.

Desde o início, o Caldeirão foi pensado como um espaço de acolhimento, fé e trabalho, inspirado na religiosidade popular nordestina e nos ensinamentos de Padre Cícero, que via no beato um homem de profunda devoção e liderança moral.

Após a grande seca de 1932, a comunidade cresceu rapidamente, passando a reunir entre 1.000 e 2.000 habitantes, formados por camponeses pobres, ex-retirantes, trabalhadores sem-terra e famílias marginalizadas pelo sistema agrário concentrador.

O beato José Lourenço tornou-se o líder espiritual e organizador da comunidade. Sua autoridade não vinha da força, mas do exemplo, da palavra e da fé. Ele pregava a união entre oração, disciplina moral e trabalho coletivo, em uma convivência baseada na solidariedade cristã.

Diferente do que mais tarde seria propagado por seus opositores, o Caldeirão não possuía armas, milícia ou projeto de revolta armada. Tratava-se de uma experiência comunitária pacífica, estruturada na produção agrícola coletiva e na partilha igualitária dos bens.

Os moradores cultivavam cereais, frutas, legumes e hortaliças, criavam animais, produziam ferramentas, roupas e utensílios, e organizavam a distribuição das colheitas conforme as necessidades de cada família.

Para muitos, era a primeira vez que experimentavam segurança alimentar, moradia estável e dignidade, sem a dependência direta dos grandes proprietários rurais ou do sistema de exploração do trabalho no sertão.

Essa experiência de cooperativismo primitivo, baseada na fraternidade cristã e na autossuficiência, transformou uma área antes árida em um território produtivo e organizado.

O êxito do Caldeirão passou a atrair cada vez mais famílias pobres e despertou profunda admiração entre os sertanejos - mas também temor e hostilidade entre os latifundiários, coronéis locais e setores conservadores da Igreja e do Estado.

O sucesso da comunidade passou a ser visto como uma ameaça à ordem social vigente, pois rompia com o modelo tradicional de dependência do trabalhador rural. A situação agravou-se após a morte de Padre Cícero, em 1934, que era o principal protetor político e religioso do Caldeirão.

Pouco depois, o Brasil vivia um clima de forte anticomunismo, intensificado após a Intentona Comunista de 1935 e consolidado com o avanço do Estado Novo de Getúlio Vargas.

Nesse contexto, o Caldeirão foi rotulado de forma arbitrária como um “reduto comunista”, “fanático” e “perigoso”, apesar de sua organização estar enraizada na religiosidade popular e não em ideologias políticas formais.

Em setembro de 1936, forças policiais invadiram o local, incendiaram casas, saquearam bens e expulsaram os moradores. Não encontraram armas nem enfrentaram resistência armada. Ainda assim, a repressão foi violenta e exemplar.

Alguns moradores retornaram e tentaram reconstruir a comunidade. Porém, em maio de 1937, após um confronto isolado que resultou na morte de policiais - ação atribuída a um seguidor sem o aval do beato -, o Estado promoveu a repressão definitiva.

Tropas da Polícia Militar do Ceará e do Exército Brasileiro, com apoio aéreo, atacaram o Caldeirão. O episódio ficou marcado como o primeiro bombardeio aéreo contra civis na história do Brasil.

Centenas de pessoas foram mortas - as estimativas variam entre 400 e mais de 1.000 vítimas, incluindo mulheres, crianças e idosos. Muitos corpos foram enterrados em valas comuns, que jamais foram oficialmente localizadas. O massacre silenciou à força uma das mais ousadas experiências de justiça social do sertão nordestino.

O beato José Lourenço conseguiu fugir para Pernambuco, onde viveu de forma discreta até morrer em 1946, vítima de peste bubônica. Durante décadas, sua história e a do Caldeirão foram marginalizadas ou distorcidas, tratadas como fanatismo ou ameaça à ordem.

Hoje, o antigo sítio do Caldeirão é um parque estadual, onde permanecem ruínas simbólicas, como a capela de Santo Inácio de Loyola e a casa do beato. Todos os anos, a Romaria da Santa Cruz do Deserto reúne milhares de pessoas que caminham em memória das vítimas, reafirmando a resistência, a luta por justiça social e o sonho de uma vida coletiva digna.

O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto permanece, assim, como um símbolo profundo de utopia sertaneja, fé popular e resistência camponesa - uma experiência reprimida pela força, mas preservada pela memória histórica e pela consciência social do povo nordestino.

sábado, dezembro 20, 2025

Adversidade


A ilha de Socotra, parte do arquipélago homônimo localizado no Mar da Arábia, no Oceano Índico, e pertencente ao Iêmen, é frequentemente chamada de “Galápagos do Oceano Índico” em razão de sua biodiversidade extraordinária e do isolamento geográfico que preservou formas de vida únicas ao longo de milhões de anos.

Separada do continente africano há cerca de 20 milhões de anos, Socotra tornou-se um laboratório natural da evolução, onde a adaptação extrema é a regra da sobrevivência.

Mais de 37% das espécies vegetais da ilha são endêmicas - não existem em nenhum outro lugar do planeta. Entre elas, destaca-se a emblemática Árvore de Sangue de Dragão (Dracaena cinnabari), verdadeiro símbolo de resistência e singularidade.

Com sua copa em forma de guarda-chuva invertido, a árvore parece desafiar a lógica da natureza. Sua resina avermelhada, que escorre como um “sangue” espesso quando o tronco é ferido, alimentou lendas antigas e foi valorizada desde a Antiguidade por suas supostas propriedades medicinais, rituais e comerciais.

A Dracaena cinnabari cresce e prospera em condições extremas: clima árido, ventos constantes, escassez de água e solos pobres em nutrientes. Cada uma dessas árvores é um testemunho silencioso da capacidade de adaptação diante da hostilidade ambiental.

Não há conforto em Socotra; há, sim, persistência. Sobreviver ali não é um acaso, mas o resultado de um equilíbrio delicado entre resistência, economia de recursos e tempo.

As paisagens da ilha, por vezes descritas como “alienígenas”, reforçam essa impressão de excepcionalidade: florestas de árvores que parecem saídas de outro planeta, planaltos calcários esculpidos pelo vento, montanhas abruptas e praias praticamente intocadas.

Tudo em Socotra sugere uma lição viva sobre perseverança, silêncio e continuidade - uma existência que não depende de excessos, mas de adaptação consciente.

Essa realidade natural ecoa como uma metáfora poderosa para a vida humana. Nunca desanime: pense de forma lúcida, busque forças internas e agarre-se a tudo o que possa ajudar a atravessar períodos difíceis - sejam pessoas próximas, aprendizados acumulados ou exemplos oferecidos pela própria natureza.

Não espere por milagres ou soluções externas que jamais chegam sozinhas. A mudança nasce do esforço constante, da disciplina e da persistência diária. Quando a superação finalmente acontece, o reconhecimento deve ser direcionado a si mesmo.

Não atribua seus avanços a promessas vazias ou intervenções sobrenaturais. O mérito é fruto da ação, da resistência e da coragem de continuar. Você não deve nada a ninguém além de a si próprio. As adversidades são caminhos duros, mas frequentemente conduzem a conquistas maiores. Vitórias e derrotas pertencem exclusivamente a quem as vive.

Socotra, aliás, enfrenta desafios concretos que reforçam ainda mais essa metáfora. As mudanças climáticas intensificaram ciclones tropicais e prolongaram períodos de seca, comprometendo a regeneração natural das Árvores de Sangue de Dragão.

Espécies invasoras, especialmente cabras introduzidas ao longo dos séculos, devoram mudas jovens e impedem o crescimento de novas gerações. Soma-se a isso a pressão humana: os reflexos do conflito no Iêmen continental, interesses geopolíticos e econômicos externos - como a presença e os projetos dos Emirados Árabes Unidos - e o risco de um desenvolvimento turístico desordenado.

Apesar desse cenário frágil, há sinais concretos de esperança. Iniciativas locais de conservação, como viveiros protegidos, cercamento de áreas naturais e programas comunitários de educação ambiental, demonstram que a resiliência não é apenas um conceito abstrato, mas uma prática cotidiana.

Quando há ação consciente, conhecimento e compromisso coletivo, a preservação torna-se possível. Assim como as árvores milenares de Socotra resistem há séculos em isolamento, vento e escassez, nós também somos capazes de crescer diante do limite.

A força não nasce da ausência de dificuldades, mas da capacidade de transformá-las em estrutura interior. Onde muitos veem apenas aridez, é possível cultivar raízes profundas - e seguir em frente, de pé, contra o tempo.

Amar você!

 


Amar você é algo que não consigo explicar plenamente. É como a magia das ondas do mar - imprevisível e hipnótica, eterna em seu movimento contínuo. As águas avançam e recuam, quebram na praia em espumas que parecem encantadas, e a cada instante se renovam, sem jamais serem as mesmas.

Assim é esse sentimento: vivo, mutável, impossível de conter em palavras definitivas. Amar você é gostar, é querer, é também sofrer. É amar porque esse é o sentimento mais profundo e verdadeiro que um ser humano pode experimentar, capaz de tocar a alma e transformá-la por inteiro.

É querer porque o amor não se acomoda; ele luta, insiste, protege e se reconstrói todos os dias para preservar aquilo que o coração escolheu como essencial.

E é sofrer porque, paradoxalmente, o sofrimento dignifica o amor verdadeiro. Não como punição, mas como aprendizado. É no meio da dor que crescemos, que amadurecemos, que compreendemos a profundidade do que sentimos.

O amor que nunca enfrenta o risco, a perda ou o medo permanece raso; o amor que atravessa a dor se torna mais consciente, mais humano e mais forte.

Amar você é desejar estar sempre ao seu lado, compartilhar cada onda de alegria, cada momento de calmaria e também cada tempestade que a vida insiste em lançar. É aceitar que nem todos os dias serão serenos, mas que ainda assim vale a pena permanecer, remar junto, resistir.

Estar sem você é como uma noite fria e sombria em mar aberto. A escuridão parece infinita, o horizonte desaparece, e o coração se vê envolto por uma angústia silenciosa, um vazio que ecoa por dentro. Resta apenas a luz distante de uma lua melancólica, bela, mas insuficiente para aquecer.

Mas quando você aparece, tudo muda. É como o sol surgindo no horizonte ao amanhecer, dissipando as sombras da noite, aquecendo o coração que estava gelado e devolvendo cor, sentido e esperança ao mundo.

A presença traz vida, clareza e um recomeço silencioso, como se o dia dissesse: ainda vale a pena. Assim como o mar, o amor não é feito apenas de calmaria. Ele carrega marés altas e baixas, ventos contrários e tempestades que testam a resistência de quem ama.

Mas também oferece auroras que lembram, com suavidade, que depois da noite mais longa sempre existe a possibilidade da luz. É nessa dança constante entre dor e êxtase que o amor se revela em sua forma mais verdadeira - não como algo perfeito ou idealizado, mas como algo real, imperfeito, transformador e indispensável.

Amar você é aceitar essa travessia, com todos os riscos e encantos que ela carrega. Amar você é navegar por esse oceano imenso com coragem, sabendo que, mesmo nas noites mais frias e incertas, o sol sempre retorna. 

E quando retorna, ilumina o caminho de volta - não apenas aos seus braços, mas ao sentido mais profundo de continuar sentindo, apesar de tudo.

Francisco Silva Sousa - Foto: Pixabay.

sexta-feira, dezembro 19, 2025

Manshiyat Nasser, Egito – A Cidade da Reciclagem



Manshiyat Nasser: O Distrito e a "Cidade do Lixo" no Cairo

Manshiyat Nasser é um dos distritos que compõem a Área Oeste do Cairo, no Egito. Com uma área de aproximadamente 5,54 km², abrigava cerca de 258.372 habitantes segundo o censo de 2017, embora estimativas mais recentes indiquem um crescimento para cerca de 278.970 pessoas em 2024.

O distrito faz fronteira com a Cidade de Nasr a leste, os distritos centrais do Cairo histórico a oeste e o distrito de Mokattam ao sul. É conhecido mundialmente pelo bairro conhecido como "Garbage City" (Cidade do Lixo), uma favela localizada no extremo sul de Manshiyat Nasser, na base das colinas de Mokattam, nos arredores da capital egípcia.

Essa área é a maior concentração de coletores de lixo conhecidos como Zabbaleen (palavra árabe para "pessoas do lixo"), cuja economia gira em torno da coleta, separação e reciclagem do lixo produzido por todo o Cairo.

Embora Manshiyat Nasser possua ruas, lojas e apartamentos como outras regiões da cidade, ainda enfrenta desafios significativos de infraestrutura. Muitas áreas carecem de água potável confiável, sistemas de esgoto adequados ou eletricidade estável, embora melhorias graduais tenham ocorrido nas últimas décadas, incluindo conexões à rede elétrica e de água desde os anos 1980.

O distrito abrange oito subdistritos (shiakhas), incluindo al-Mujawirin, Sultan Qaytbay e Sultan Barquq, localizados no cemitério histórico do Cairo oriental (conhecido como Cidade dos Mortos); al-Kahzzan (popularmente chamado de Zabbalin ou Garbage City); al-Mahagir (literalmente "pedreiras", também conhecida como Ezbet Bekheit), que ocupam pedreiras abandonadas no sopé ocidental do planalto de Mokattam; e al-Duweika (Al-Doweiqa), na extremidade norte do planalto.

População e Comunidade Copta

Originalmente, os cristãos coptas eram os habitantes predominantes de Manshiyat Nasser, migrando principalmente do Alto Egito nas décadas de 1940 e 1950. Nas últimas décadas, a população muçulmana cresceu expressivamente. Os coptas são famosos por criar porcos na área, alimentando-os com resíduos orgânicos do lixo, e comercializando a carne para estabelecimentos cristãos em todo o Cairo.

No entanto, em 2009, durante o pânico global pela gripe suína (H1N1), o governo egípcio ordenou o abate massivo de todos os porcos do país - cerca de 350 mil animais apenas no Cairo.

Essa medida, criticada por não ter base científica real (o Egito não registrou casos humanos da doença na época), devastou a economia dos Zabbaleen, pois os porcos eram essenciais para processar resíduos orgânicos.

Como consequência imediata, pilhas de lixo orgânico apodrecido acumularam-se nas ruas do Cairo, piorando a limpeza da cidade. Muitos Zabbaleen reconstruíram seus rebanhos ao longo dos anos, adaptando-se com compostagem ou outras alternativas.

Outro evento trágico foi o desmoronamento de rochas em al-Duweika, em 6 de setembro de 2008, quando enormes blocos de pedra do planalto de Mokattam caíram sobre casas na favela de Ezbet Bekhit, matando pelo menos 119 pessoas e deixando centenas de famílias desabrigadas.

O desastre destacou a vulnerabilidade das construções informais e levou a evacuações forçadas e realocações para moradias distantes.

A Igreja da Caverna

Um dos marcos mais impressionantes é o Mosteiro de São Simão, o Curtidor (conhecido como Catedral da Caverna ou Igreja de São Samaano). Escavada diretamente nas falésias de Mokattam, é a maior igreja do Oriente Médio, com capacidade para até 20 mil pessoas em seu anfiteatro natural.

Dedicada a São Simão, um santo copta do século X que, segundo a lenda, realizou o milagre de mover a montanha, o complexo inclui várias igrejas e capelas em cavernas. Tornou-se um símbolo de resiliência para a comunidade copta e atrai turistas.

Lixo e Reciclagem: Um Sistema Eficiente e Informal

Os Zabbaleen coletam o lixo porta a porta em todo o Cairo, cobrando uma taxa simbólica, e o transportam para Manshiyat Nasser em caminhões ou carroças. Lá, famílias especializadas separam manualmente os materiais: plásticos, papel, vidro, metais e orgânicos.

Estima-se que processem mais de 14 mil toneladas por dia, reciclando até 85-90% do lixo coletado - uma taxa muito superior à de sistemas formais ocidentais (geralmente 20-30%). Produtos reciclados, como papel, vidro e plásticos granulados, são fabricados localmente ou vendidos para indústrias, inclusive exportados para Europa, América do Norte e Ásia.

Nos últimos anos, com a demanda global por plásticos reciclados (como PET), a comunidade tem prosperado: empresas multinacionais como Nestlé, Pepsi e Heineken firmaram parcerias desde 2019 para coletar garrafas específicas, trazendo renda adicional.

Em 2003, o governo tentou privatizar a coleta com empresas multinacionais, o que reduziu a eficiência e causou acúmulo de lixo nas ruas. Hoje, o sistema informal dos Zabbaleen coexiste com o formal, e ONGs como a Association for the Protection of the Environment apoiam educação, saúde e projetos de artesanato com materiais reciclados.

Visão Geral

Manshiyat Nasser exemplifica resiliência: uma comunidade marginalizada transformou o lixo alheio em sustento, alcançando taxas de reciclagem invejáveis globalmente.

O documentário Garbage Dreams (2009), de Mai Iskander, retrata a vida de jovens Zabbaleen enfrentando mudanças no sistema de coleta. Apesar dos desafios - saúde precária, estigma social e riscos ambientais -, a área evoluiu, tornando-se até ponto turístico responsável, com visitas guiadas à igreja da caverna e projetos de reciclagem.

Hoje, em um mundo preocupado com sustentabilidade, os Zabbaleen são vistos como modelo de economia circular informal, provando que inovação surge muitas vezes das margens.

Eu Já Vivi Antes – A História de Shanti Devi


 

“Eu morri ao dar à luz. Deixei três filhos e um marido em Mathura. Quero voltar para casa.”

A frase, dita com serenidade desconcertante, fez a mãe paralisar. Não sabia se ria, se repreendia, se se preocupava. Crianças pequenas inventam histórias -, mas não daquela forma. Não com tamanha firmeza, nem com um peso de verdade que parecia vir de um lugar distante demais para a imaginação infantil.

No início, tudo foi tratado como fantasia. Contudo, Shanti Devi, uma menina de apenas quatro anos, nascida em Delhi em 1926, não falava como quem brinca. Falava como quem recorda.

Mathura não era para ela um lugar imaginário, mas um lar perdido. Corrigia a comida preparada por sua mãe atual, reclamando que não tinha o mesmo sabor da comida feita em sua “casa verdadeira”.

Descrevia receitas que jamais aprendera naquela vida, mencionava utensílios, temperos e hábitos domésticos com uma naturalidade impossível de explicar. Shanti afirmava ter sido Lugdi Devi, casada com um comerciante de tecidos chamado Kedar Nath Chaubey, proprietário de uma loja em Mathura.

Citava nomes de ruas, parentes, vizinhos e episódios cotidianos com precisão inquietante. Falava dos três filhos que deixará para trás com uma saudade profunda - uma saudade que não cabia no corpo pequeno de uma criança tão nova. Não havia teatralidade em suas palavras, apenas melancolia e certeza.

Os pais tentaram ignorar. Depois, atribuíram tudo a coincidências, a histórias ouvidas ao acaso, à sugestão inconsciente. Por fim, buscaram ajuda médica. O diagnóstico foi ainda mais perturbador: nenhuma doença mental, nenhum sinal de delírio ou histeria.

Os médicos encontraram apenas uma menina calma, lúcida e coerente, absolutamente convicta de estar relatando uma vida anterior - uma vida que, segundo ela, havia terminado em 1925, dez dias após o parto de seu terceiro filho, quando Lugdi Devi morrera em decorrência de complicações pós-parto.

A história ultrapassou os limites da família quando o diretor da escola de Shanti, intrigado, decidiu investigar. Localizou Kedar Nath em Mathura e organizou testes para verificar a veracidade das afirmações da menina.

Um primo do comerciante foi enviado a Delhi disfarçado, sem revelar sua identidade. Shanti o reconheceu imediatamente. Pouco depois, o próprio Kedar Nath viajou até a cidade, acompanhado do filho que tivera com Lugdi - então com cerca de dez anos - fingindo ser apenas um “irmão” da falecida.

Mais uma vez, Shanti não se deixou enganar. Identificou-o na hora, abraçou o menino como seu filho e revelou detalhes íntimos do casamento, incluindo segredos que apenas o casal conhecia e promessas feitas no leito de morte.

A repercussão foi imediata. A história espalhou-se pela Índia como um incêndio, atravessando jornais, vilarejos e círculos intelectuais. Chegou aos ouvidos de Mahatma Gandhi, que, longe de descartar o caso, decidiu tratá-lo com seriedade.

Fascinado, formou uma comissão de quinze pessoas eminentes - entre parlamentares, jornalistas, líderes religiosos e figuras públicas - para investigar o fenômeno com rigor.

Em novembro de 1935, a comissão levou Shanti Devi, então com nove anos, a Mathura pela primeira vez “nesta vida”. Diante de uma multidão curiosa, ela guiou o grupo sem hesitação pelas ruas da cidade, conduziu-os diretamente à antiga residência de Lugdi, reconheceu parentes, inclusive o sogro, descreveu reformas recentes na casa e surpreendeu a todos ao indicar o local exato onde Lugdi afirmava ter escondido 150 rúpias antes de morrer.

Confrontado, Kedar Nath admitiu que realmente encontrara e retirara o dinheiro após a morte da esposa.

Em 1936, a comissão publicou um relatório oficial concluindo que não havia explicação convencional capaz de invalidar o testemunho de Shanti Devi. O documento afirmava, de forma direta, que ela era, de fato, a reencarnação de Lugdi Devi.

Décadas depois, pesquisadores independentes continuaram a estudar o caso. Entre eles, destacou-se o psiquiatra Ian Stevenson, da Universidade da Virgínia, que documentou e confirmou ao menos 24 declarações específicas feitas por Shanti que coincidiam com fatos verificáveis.

Mesmo críticos severos foram impactados. O jornalista sueco Sture Lönnerstrand viajou à Índia com o objetivo declarado de desmascarar o caso como fraude. Após meses de investigação, voltou atrás e declarou: “Este é o caso de reencarnação mais completo e bem documentado que já existiu.”

Curiosamente, Shanti Devi nunca se casou nesta vida. Viveu de forma discreta até sua morte, em 1987, dedicando-se ao ensino da filosofia hindu e ao relato de suas experiências, sempre com sobriedade e sem buscar fama ou benefício pessoal.

Nunca tentou explorar sua história comercialmente, o que reforçou ainda mais a credibilidade atribuída ao seu testemunho. O caso de Shanti Devi permanece, até hoje, como um dos episódios mais intrigantes da história moderna.

Para alguns, é uma prova contundente da reencarnação; para outros, um desafio ainda não resolvido pela psicologia e pela ciência. Seja qual for a interpretação, sua história continua a provocar perguntas fundamentais sobre memória, identidade, consciência e a possibilidade de que a vida - de alguma forma - não termine com a morte.

Mais do que uma curiosidade sobrenatural, o caso Shanti Devi permanece como um lembrete inquietante de que há aspectos da experiência humana que ainda escapam às explicações racionais mais consolidadas.

quarta-feira, dezembro 17, 2025

No velório...


Precisamos aprender a usar melhor as ferramentas de comunicação que são as inúmeras redes sociais: X (antigo Twitter), Facebook, Instagram, Telegram, entre outras. Essas plataformas revolucionaram a forma como nos conectamos, aproximando pessoas distantes geograficamente e permitindo trocas instantâneas de informações, fotos e experiências.

No entanto, paradoxalmente, elas também afastam aquelas que estão fisicamente próximas. Estudos e observações cotidianas mostram que o uso excessivo de redes sociais pode levar ao isolamento social, mesmo em ambientes compartilhados, como lares ou espaços públicos.

Um exemplo claro disso é o que acontece nas refeições familiares: no café da manhã, almoço ou jantar, especialmente entre os jovens, é comum ver pessoas comendo e teclando ao mesmo tempo. O diálogo, que antes era natural à mesa, praticamente desapareceu em muitas casas.

Não há mais aquela interação rica de sentar no sofá para assistir a um filme, ao noticiário ou à novela em família, comentando e compartilhando emoções. Esse comportamento, conhecido como phubbing (uma combinação de "phone" e "snubbing", ou seja, ignorar alguém em favor do celular), tem sido amplamente estudado e associado a uma redução na qualidade das relações interpessoais.

Pesquisas indicam que ele gera sentimentos de exclusão, diminui a satisfação nos relacionamentos e pode contribuir para problemas como ansiedade e depressão. Nas ruas, no ônibus, no metrô ou até dentro de carros, as pessoas raramente se olham nos olhos ou interagem de forma espontânea.

Em vez disso, estão imersas nas telas, rolando feeds infinitos. Essa perda de atenção ao entorno não é inofensiva: ela aumenta riscos reais, como não perceber perigos iminentes. Há relatos e estudos que apontam para um crescimento em incidentes de furtos de celulares e bolsas em transportes públicos, justamente porque as vítimas estão distraídas.

Embora a distração por celular seja mais documentada em acidentes de trânsito (com milhares de mortes anuais associadas globalmente), o mesmo princípio de "cegueira por desatenção" se aplica a situações cotidianas, onde não se nota a aproximação de um assaltante ou outros riscos.

A ilustração reflete uma realidade preocupante: estamos perdendo o discernimento em momentos cruciais. O uso excessivo de redes sociais fragmenta a atenção, reduz a capacidade de concentração profunda e pode alterar até mesmo estruturas cerebrais, especialmente em jovens, segundo pesquisas recentes.

Isso leva a uma maior vulnerabilidade emocional, com aumento de comparações sociais negativas, baixa autoestima e sensação de solidão, mesmo estando "conectados" o tempo todo.

Para contrabalançar esses efeitos, é essencial cultivar hábitos conscientes: estabelecer zonas livres de celular durante refeições ou encontros familiares, priorizar interações presenciais e limitar o tempo diário nas redes (especialistas sugerem não exceder 3 horas para evitar riscos maiores à saúde mental).

As redes sociais são ferramentas poderosas quando usadas com moderação, mas, sem equilíbrio, elas podem transformar conexões reais em superficialidade digital. Aprender a desligar a tela é, hoje, uma forma de reconectar com o mundo ao nosso redor e com as pessoas que realmente importam.

Estamos Neuróticos



“Faz sentido que se esteja a enviar para o espaço uma sonda para explorar Plutão enquanto aqui as pessoas morrem de fome? Estamos neuróticos. Não só existe desigualdade na distribuição da riqueza, como também na satisfação das necessidades básicas.

Não nos orientamos por um sentido de racionalidade mínima. A Terra está rodeada de milhares de satélites, podemos ter em casa cem canais de televisão, mas para que nos serve isto neste mundo onde tantos morrem?
É uma neurose coletiva: as pessoas já não sabem o que lhes é essencial para a sua felicidade!” - José Saramago

Essa reflexão de José Saramago, proferida em um contexto próximo ao lançamento da missão New Horizons, da NASA, em janeiro de 2006, permanece profundamente atual.

A sonda foi enviada para explorar Plutão, realizando um sobrevoo histórico em julho de 2015, que revelou um mundo gelado e surpreendentemente complexo, com montanhas de gelo, planícies vastas, uma atmosfera ativa e indícios de possíveis oceanos subterrâneos.

O feito ampliou de forma decisiva o conhecimento humano sobre o Sistema Solar e redefiniu a compreensão dos chamados planetas anões. A missão, que custou entre 700 e 780 milhões de dólares ao longo de aproximadamente 15 anos, tornou-se um marco científico.

No entanto, Saramago não questionava o valor do conhecimento em si, mas sim as prioridades éticas e políticas da humanidade. Sua pergunta central ecoa como um incômodo moral: por que a civilização é capaz de mobilizar recursos imensos para explorar um corpo celeste distante, enquanto milhões de pessoas, no próprio planeta, seguem privadas do mínimo necessário para viver com dignidade?

Quase duas décadas depois, em 2025, essa crítica mantém-se dolorosamente pertinente. De acordo com o relatório The State of Food Security and Nutrition in the World (SOFI 2025), da ONU, cerca de 673 milhões de pessoas enfrentaram a fome em 2024 - o equivalente a 8,2% da população mundial.

Embora haja uma ligeira redução em relação aos anos anteriores, o mundo permanece muito distante da meta de erradicar a fome até 2030, estabelecida pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Conflitos armados que afetam mais de 295 milhões de pessoas, crises econômicas persistentes, desigualdades estruturais e os efeitos cada vez mais severos das mudanças climáticas continuam a alimentar essa tragédia, sobretudo em regiões como a África Subsaariana e a Ásia Ocidental.

Milhões de crianças sofrem de subnutrição crônica, com impactos irreversíveis sobre o desenvolvimento físico, cognitivo e emocional - uma perda silenciosa de potencial humano.

Enquanto isso, a exploração espacial avança em ritmo acelerado. Em 2025, projetos como a Europa Clipper, destinada a investigar a lua gelada de Júpiter em busca de condições para a vida; a missão SPHEREx, que mapeia o universo em infravermelho; a ESCAPADE, com duas sondas orbitando Marte para estudar a perda de sua atmosfera; e o ambicioso programa Artemis, que prevê o retorno humano à Lua, consomem bilhões de dólares dos orçamentos de agências espaciais ao redor do mundo.

É inegável que esses investimentos produzem benefícios indiretos relevantes, impulsionando avanços em áreas como comunicações, medicina, engenharia de materiais e energias alternativas. Contudo, como alertava Saramago, existe uma espécie de “neurose coletiva” que nos leva a celebrar o extraordinário e o distante, enquanto toleramos o inaceitável que ocorre à nossa porta.

Não se trata de opor ciência a solidariedade, nem de negar o valor do conhecimento cósmico. O problema reside no desequilíbrio. O escritor português - Prêmio Nobel de Literatura em 1998 e voz incansável contra as desigualdades - denunciava a ausência de um “sentido de racionalidade mínima”, capaz de alinhar progresso tecnológico com justiça social.

Num mundo em que a riqueza global seria suficiente para erradicar a fome extrema com uma fração dos gastos militares ou espaciais, persiste a pergunta essencial: o que é, afinal, verdadeiramente necessário para a felicidade coletiva?

Talvez o grande desafio da nossa era não seja apenas alcançar as estrelas, mas aprender, com urgência, a cuidar da Terra e das pessoas que nela vivem.

terça-feira, dezembro 16, 2025

Os Deuses devem estar loucos


 

Os Deuses Devem Estar Loucos - A História de Nǃxau ǂToma

Nǃxau ǂToma, também conhecido como N!xau, nasceu em Tsumkwe, no norte da Namíbia, em 16 de dezembro de 1944. De origem san (bosquímano), era camponês e caçador antes de se tornar, quase por acaso, uma figura mundialmente conhecida do cinema.

Nǃxau ganhou notoriedade internacional ao interpretar Xixo, um bosquímano do deserto do Kalahari, no filme The Gods Must Be Crazy (1980), lançado no Brasil como Os Deuses Devem Estar Loucos.

A produção alcançou um impacto global inesperado, tornando-se um dos filmes estrangeiros mais bem-sucedidos da história do cinema, com bilheteria superior a 200 milhões de dólares.

O nome de Nǃxau contém sinais gráficos incomuns para falantes de línguas indo-europeias. O ponto de exclamação representa um clique consonantal, típico de sua língua nativa, o !Kung (Juǀʼhoan), em que os sons dentais e palatais têm função fonética essencial.

A pronúncia de seu nome verdadeiro, Gǃkau, envolve um clique dental vocalizado, o que explica as inúmeras variações e erros de grafia ao longo de sua carreira.

Após o sucesso do primeiro filme, Nǃxau participou de diversas sequências e produções derivadas, entre elas: The Gods Must Be Crazy II. Crazy Safari, Crazy Hong Kong e The Gods Must Be Funny in China

Apesar de sua imagem icônica e da enorme rentabilidade dos filmes, a trajetória financeira de Nǃxau revela um lado obscuro da indústria cinematográfica e das relações de poder entre o Norte global e povos tradicionais africanos.

Segundo o Internet Movie Database (IMDb), Nǃxau recebeu apenas algumas centenas de dólares por sua atuação no primeiro filme. Há relatos de que o valor pago teria sido cerca de 300 dólares, uma quantia irrisória diante do sucesso comercial da obra.

O jornal The Namibian, em seu obituário, mencionou que, “segundo a lenda”, Nǃxau teria deixado o dinheiro “ser levado pelo vento”, pois não compreendia plenamente o conceito monetário nem o valor simbólico do dinheiro dentro da economia capitalista.

No entanto, com o passar do tempo e após novas experiências cinematográficas, Nǃxau passou a compreender melhor os mecanismos de negociação. Na época da primeira sequência, já possuía maior consciência de seu valor como ator, chegando a negociar sua participação por mais de meio milhão de rands sul-africanos, o equivalente a cerca de 80 mil dólares à época. Ainda assim, esse montante permanecia desproporcional frente aos lucros gerados.

Encerrada sua carreira no cinema, Nǃxau retornou à vida simples em Tsumkwe. Dedicou-se ao cultivo de milho, banana e feijão, além de criar algumas cabeças de gado, mantendo-se fiel ao modo de vida tradicional de seu povo.

Nǃxau faleceu em 5 de julho de 2003, aos 59 anos, vítima de tuberculose multirresistente, enquanto caçava pintadas. Foi sepultado em 12 de julho de 2003, em uma cerimônia fúnebre semi-tradicional, em Tsumkwe, ao lado de sua segunda esposa.

De acordo com seu agente, o nome correto do ator seria G!xau, mas um erro tipográfico durante a produção do filme original acabou consagrando internacionalmente a forma N!xau, que permaneceu nos registros oficiais e na mídia.

Exploração e Contradições

A história de Nǃxau Toma é frequentemente citada como um exemplo emblemático de exploração cultural e econômica. O ator principal de um filme que arrecadou mais de 200 milhões de dólares morreu pobre, sem acesso a cuidados de saúde adequados e distante da riqueza que ajudou a gerar.

Ele foi claramente prejudicado nas negociações iniciais. Não participou das decisões contratuais e apenas aceitou o que lhe foi apresentado, sem plena compreensão do alcance comercial de seu trabalho.

Essa situação reflete uma prática histórica recorrente: a exploração de povos africanos e indígenas, muitas vezes tratados como recursos exóticos, e não como sujeitos de direitos.

O próprio enredo de Os Deuses Devem Estar Loucos simboliza o choque entre dois mundos: o da sociedade moderna e o das culturas tradicionais. No filme, um grupo de bosquímanos vive em harmonia no deserto até que sua rotina é interrompida pela queda de uma garrafa de Coca-Cola lançada de um avião - um objeto estranho que desencadeia conflito, disputa e desordem. Ironicamente, essa metáfora se concretizou na vida real do protagonista.

Nǃxau morreu pobre não apenas porque foi explorado, mas porque lhe foram negadas as ferramentas necessárias para compreender plenamente o sistema que lucrava com sua imagem e talento.

Sua história ecoa a de muitos africanos ao longo dos séculos: explorados como escravizados, utilizados como cobaias, marginalizados economicamente e culturalmente silenciados.

Mesmo em um filme que se valeu da autenticidade, carisma e presença de um homem simples - que desempenhou seu papel com perfeição - o reconhecimento justo não veio. Nǃxau Toma tornou-se um símbolo involuntário das desigualdades globais e da persistente exploração dos povos originários, cuja contribuição ao mundo muitas vezes é celebrada, mas raramente recompensada com justiça.