Ruivas: as mais temidas, desejadas e demonizadas da História
Durante milênios, poucas características
físicas despertaram tanto fascínio e medo quanto os cabelos vermelhos. Em quase
todas as culturas, as ruivas foram vistas como diferentes - e o diferente,
quase sempre, foi tratado como perigoso.
Antiguidade e mitologia
No Antigo Egito, os ruivos eram associados ao
deus Set (ou Seth), o senhor do caos, das tempestades e da violência.
Sacrificar pessoas de cabelos vermelhos (ou até animais ruivos) era um ritual
para aplacar a ira do deus. Há registros de que, em certas épocas, ruivos eram
queimados vivos em cerimônias para “afastar o mal”.
Na Grécia antiga, acreditava-se que os ruivos
se transformavam em vampiros após a morte. Aristóteles chegou a escrever que
pessoas de cabelo vermelho eram emocionalmente instáveis e “de sangue quente”.
Na tradição judaica pré-cristã, Lilith - a
suposta primeira esposa de Adão, que se rebelou e virou demônio - é
frequentemente descrita em textos medievais como uma mulher de longos cabelos
ruivos flamejantes.
Idade Média e Inquisição
Durante a Idade Média europeia, o cabelo
vermelho tornou-se um dos principais “sinais” de bruxaria. Milhares de mulheres
(e alguns homens) ruivos foram queimados na fogueira, sobretudo na Alemanha e
na Escócia.
A Inquisição Espanhola associava os cabelos
ruivos aos judeus (mesmo que muitos judeus sefarditas fossem morenos). Na arte
renascentista, Judas Iscariotes quase sempre era pintado como ruivo - um
estereótipo que perdurou séculos.
Em “O Mercador de Veneza” de Shakespeare,
embora Shylock não seja explicitamente descrito como ruivo no texto, muitas
montagens clássicas tingiam seu cabelo ou barba de vermelho para reforçar a
imagem do “judeu traiçoeiro”.
Na Inglaterra elisabetana e jacobina (séculos
XVI–XVII), acreditava-se que as bruxas roubavam crianças para tingir seus
cabelos com sangue e ficarem ruivas - uma lenda que ajudou a alimentar caças às
bruxas.
Era Moderna e o preconceito que sobreviveu
No século XIX, na Inglaterra vitoriana, ser
ruivo ainda era motivo de bullying nas escolas. O termo “ginger” passou a ser
usado como insulto (e ainda é em alguns lugares do Reino Unido).
Durante o nazismo, embora os nazistas
exaltassem o “tipo ariano loiro”, os ruivos eram vistos com desconfiança: o
gene MC1R era considerado uma “degeneração” da pureza racial nórdica. Alguns
cientistas da época sugeriram esterilizar ruivos.
A ciência por trás do fogo
Os cabelos ruivos são causados por variantes
do gene MC1R, localizado no cromossomo 16. Esse gene controla a produção de
feomelanina (pigmento avermelhado) em vez de eumelanina (castanho/preto). Para
alguém ser ruivo natural, precisa herdar duas cópias da variante recessiva -
uma do pai e uma da mãe.
Curiosidades biológicas:
Ruivos têm maior tolerância a anestésicos
(precisam de cerca de 20% mais anestesia geral). Sentem mais frio e mais calor,
e produzem vitamina D com mais eficiência (vantagem evolutiva em regiões
nubladas do norte da Europa).
Têm menos cabelos na cabeça que a média
(cerca de 90 mil fios, contra 140 mil de loiros e 110 mil de morenos).
Onde estão os ruivos hoje?
Escócia: 13% da população tem cabelos ruivos;
40% carrega o gene (maior concentração do mundo).
Irlanda: 10% ruivos, 46% portadores do gene.
Na pequena ilha de Udmúrtia (Rússia), há um
festival anual chamado “Dia do Cabelo Vermelho”, que reúne milhares de ruivos
de todo o país - um dos poucos lugares onde ser ruivo é motivo de orgulho
coletivo.
Vão desaparecer?
Em 2007, uma falsa notícia (originada numa
matéria mal interpretada da revista National Geographic) espalhou que “os
ruivos vão desaparecer em 2060”. Não é verdade. O gene é recessivo, mas
enquanto houver humanos, haverá casais que podem gerar ruivos.
A porcentagem pode diminuir com a
miscigenação global, mas a extinção é biologicamente impossível sem uma
catástrofe que elimine o gene MC1R por completo.
E os neandertais?
Estudos genéticos de 2007 e 2017 (publicados
na Science e na Nature) confirmaram que algumas populações de neandertais
possuíam variantes do MC1R idênticas às dos ruivos modernos. Ou seja: o cabelo
vermelho existe há pelo menos 50-100 mil anos - muito antes do Homo sapiens
chegar à Europa.
Hoje: do estigma ao fetiche
No século XXI, o jogo virou. Depois de
milênios sendo queimadas, temidas e ridicularizadas, as ruivas viraram símbolo
de beleza rara e sensualidade. Campanhas publicitárias, filmes, séries (pense
em Jessica Chastain, Karen Gillan, Sophie Turner como Sansa Stark) e até bancos
de esperma na Dinamarca relatam maior procura por doadores ruivos.
Do demônio na fogueira à musa desejada:
poucas características humanas passaram por uma reversão tão radical de imagem.
E, no fim das contas, tudo isso por causa de uma pequena mutação num único
gene.
Se você conhece uma ruiva, lembre-se: ela
carrega nas veias o mesmo fogo que aterrorizou impérios, queimou bruxas,
desafiou deuses e, ainda hoje, faz o mundo parar para olhar duas vezes.
Porque, como dizia o escritor francês
Jean-Paul Richter: “Os ruivos são como o pôr do sol: raros, intensos, e quem os
vê nunca esquece.”










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