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quarta-feira, dezembro 10, 2025

Não Digas Nada!



"Não digas nada. Nem mesmo a verdade. Porque há uma suavidade quase sagrada em nada se dizer e, ainda assim, tudo se compreender - um entendimento suspenso entre o que se vê e o que apenas se pressente; metade de gesto, metade de arrepio.

Não digas nada agora. Deixa que o tempo dissolva, que a memória reencontre o seu lugar. Talvez amanhã - noutra paisagem, noutra claridade, quando o corpo já estiver longe da ferida e da saudade - digas que foi vã toda essa viagem.

Talvez então percebas que o caminho foi feito com passos cansados, mas também com passos de luz. Até onde pude ser quem te agradava; e mesmo assim, mesmo ali, mesmo imperfeita, fui feliz. Por isso, não digas nada."

Este poema, frequentemente lembrado apenas pelo primeiro verso - “Não digas nada” - é um dos segredos mais delicados da obra de Florbela Espanca. Escrito entre 1922 e 1923, pertence ao período em que a autora, já ferida por perdas consecutivas, tentava reinventar-se na escrita porque na vida já não encontrava abrigo.

Florbela vivia um tempo em que quase tudo lhe fugia das mãos: o corpo instável, a saúde mental frágil, os amores breves que nunca bastavam, os sucessivos casamentos que se esvaziavam antes mesmo de amadurecer. As crises nervosas, tratadas com Veronal - medicamento que mais tarde selaria a tragédia final - intensificavam as sensações de inadequação e exílio emocional.

Enquanto escrevia esses versos, ela ainda tentava acreditar na promessa do terceiro casamento com o médico Antônio Guimarães, mas a sombra do fracasso rondava tudo.

As perdas anteriores não haviam cicatrizado: a morte da mãe quando ainda era criança; o divórcio traumático de Alberto Moutinho; as tentativas frustradas de ser mulher e artista em um país que recusava a sua flamboyância emocional.

Quando Florbela diz “talvez amanhã, noutra paisagem”, não fala apenas de um amanhã real, mas de um amanhã impossível - um amanhã onde tudo se explicaria, onde não haveria mais dever, nem dívida emocional, nem inquietação. Na sua escrita, esse amanhã era o lugar da absolvição.

O verso “até onde quis ser quem me agrada” revela uma confissão silenciosa: Florbela sempre se moldou à expectativa do outro. Tentou ser a esposa ideal, a musa ideal, a mulher controlada, pura, discreta - mas nenhuma dessas versões lhe servia. E essa inadequação era, para ela, a ferida que mais doía.

Quando o irmão Apeles morre em 1927 - já depois da composição do poema - a ferida transforma-se em abismo. Ela chamava o irmão de “meu filho, meu pai, meu tudo”. Sua morte trágica num acidente de aviação desfaz o pouco de chão que restava.

A viagem, então, torna-se definitivamente “vã”.

Em dezembro de 1930, no dia em que completava 36 anos, Florbela decide partir. Não há grito, não há escândalo. Apenas silêncio. O mesmo silêncio que o poema suplica. Toma Veronal - o mesmo remédio que a mantinha adormecida - e deixa cartas que nunca foram plenamente reveladas. O livro que seria publicado naquele mesmo dia - Dominó Preto - sairia sem sua presença.

Não apenas se despede. Silencia. Desaparece como quem fecha uma porta por dentro. Esse poema é, portanto, uma espécie de bilhete antecipado - um pedido final que atravessa o tempo: não digam nada.

Nem os jornais, nem os críticos, nem os amantes anteriores, nem os curiosos, nem os que a julgavam exagerada, nem os que confundiam intensidade com escândalo. Não digam nada.

E, ao mesmo tempo, digam tudo através do silêncio. Por isso estes versos, tão breves e tão límpidos, funcionam como epitáfio emocional: Florbela pede que ninguém a explique, ninguém lhe devolva interpretação, ninguém prolongue a dor com justificativas. Nem mesmo a verdade importa.

O que importa é que, por um instante fugaz - nesse poema, nesse fragmento - ela confessa: fui feliz. E essa felicidade, desmontada, insuficiente, tardia, foi suficiente para que pedisse apenas quietude.

Assim termina uma das despedidas mais sublimes da literatura portuguesa: não com ruído, mas com um convite ao silêncio que ainda hoje ecoa.

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