"Não digas nada. Nem mesmo a
verdade. Porque há uma suavidade quase sagrada em nada se dizer e, ainda assim,
tudo se compreender - um entendimento suspenso entre o que se vê e o que apenas
se pressente; metade de gesto, metade de arrepio.
Não digas nada agora. Deixa
que o tempo dissolva, que a memória reencontre o seu lugar. Talvez amanhã -
noutra paisagem, noutra claridade, quando o corpo já estiver longe da ferida e
da saudade - digas que foi vã toda essa viagem.
Talvez então percebas que o
caminho foi feito com passos cansados, mas também com passos de luz. Até onde
pude ser quem te agradava; e mesmo assim, mesmo ali, mesmo imperfeita, fui
feliz. Por isso, não digas nada."
Este poema, frequentemente
lembrado apenas pelo primeiro verso - “Não digas nada” - é um dos segredos mais
delicados da obra de Florbela Espanca. Escrito entre 1922 e 1923, pertence ao
período em que a autora, já ferida por perdas consecutivas, tentava reinventar-se
na escrita porque na vida já não encontrava abrigo.
Florbela vivia um tempo em que
quase tudo lhe fugia das mãos: o corpo instável, a saúde mental frágil, os
amores breves que nunca bastavam, os sucessivos casamentos que se esvaziavam
antes mesmo de amadurecer. As crises nervosas, tratadas com Veronal -
medicamento que mais tarde selaria a tragédia final - intensificavam as
sensações de inadequação e exílio emocional.
Enquanto escrevia esses
versos, ela ainda tentava acreditar na promessa do terceiro casamento com o
médico Antônio Guimarães, mas a sombra do fracasso rondava tudo.
As perdas anteriores não
haviam cicatrizado: a morte da mãe quando ainda era criança; o divórcio
traumático de Alberto Moutinho; as tentativas frustradas de ser mulher e artista
em um país que recusava a sua flamboyância emocional.
Quando Florbela diz “talvez
amanhã, noutra paisagem”, não fala apenas de um amanhã real, mas de um amanhã
impossível - um amanhã onde tudo se explicaria, onde não haveria mais dever,
nem dívida emocional, nem inquietação. Na sua escrita, esse amanhã era o lugar
da absolvição.
O verso “até onde quis ser
quem me agrada” revela uma confissão silenciosa: Florbela sempre se moldou à
expectativa do outro. Tentou ser a esposa ideal, a musa ideal, a mulher
controlada, pura, discreta - mas nenhuma dessas versões lhe servia. E essa
inadequação era, para ela, a ferida que mais doía.
Quando o irmão Apeles morre em
1927 - já depois da composição do poema - a ferida transforma-se em abismo. Ela
chamava o irmão de “meu filho, meu pai, meu tudo”. Sua morte trágica num
acidente de aviação desfaz o pouco de chão que restava.
A viagem, então, torna-se
definitivamente “vã”.
Em dezembro de 1930, no dia em
que completava 36 anos, Florbela decide partir. Não há grito, não há escândalo.
Apenas silêncio. O mesmo silêncio que o poema suplica. Toma Veronal - o mesmo
remédio que a mantinha adormecida - e deixa cartas que nunca foram plenamente
reveladas. O livro que seria publicado naquele mesmo dia - Dominó Preto -
sairia sem sua presença.
Não apenas se despede.
Silencia. Desaparece como quem fecha uma porta por dentro. Esse poema é,
portanto, uma espécie de bilhete antecipado - um pedido final que atravessa o
tempo: não digam nada.
Nem os jornais, nem os
críticos, nem os amantes anteriores, nem os curiosos, nem os que a julgavam
exagerada, nem os que confundiam intensidade com escândalo. Não digam nada.
E, ao mesmo tempo, digam tudo
através do silêncio. Por isso estes versos, tão breves e tão límpidos,
funcionam como epitáfio emocional: Florbela pede que ninguém a explique,
ninguém lhe devolva interpretação, ninguém prolongue a dor com justificativas. Nem
mesmo a verdade importa.
O que importa é que, por um
instante fugaz - nesse poema, nesse fragmento - ela confessa: fui feliz. E essa
felicidade, desmontada, insuficiente, tardia, foi suficiente para que pedisse
apenas quietude.
Assim termina uma das
despedidas mais sublimes da literatura portuguesa: não com ruído, mas com um convite ao silêncio que ainda hoje ecoa.









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