Latif Yahia: o homem que foi obrigado a ser Uday Hussein
Latif Yahia nasceu em 14 de junho de 1964, em
uma família curda de classe média em Bagdá. Oficial do Exército iraquiano,
lutou na frente de batalha durante a Guerra Irã-Iraque (1980-1988). Era
tenente, culto, falava inglês fluente e tinha um rosto que, para seu azar, era
quase idêntico ao do filho mais velho de Saddam Hussein: Uday.
Os dois tinham sido colegas na mesma escola
de elite em Bagdá nos anos 1970. Já naquela época os outros alunos brincavam: “Latif,
você é o Uday sem dinheiro e sem loucura.” Ninguém imaginava que a piada um dia
se tornaria sentença de morte.
O dia em que o chamaram ao palácio
Em 1987, no auge da guerra, Latif recebeu uma
ordem direta do comando militar: apresentar-se imediatamente no Palácio
Republicano. Achou que seria convocado para uma missão especial na frente de
batalha. Chegou de uniforme, orgulhoso, barba bem feita.
Foi levado a uma sala sem janelas. Lá estava
Uday em pessoa, sorrindo como quem escolhe um terno novo. “Salam aleikum,
Latif”, disse Uday, dando um tapa amigável no ombro do tenente. “A partir de
hoje você vai ser eu quando eu não quiser morrer.” Latif riu, achando que era
brincadeira. Uday não riu. Recusou na hora.
“Eu sou oficial do Exército, não ator de
teatro.” Resposta errada. Foi jogado em uma cela de 2 × 2 metros embaixo do
palácio. Sem luz, sem visitas, comida podre jogada uma vez por dia. Oito meses
depois, quando já não conseguia mais ficar de pé, assinaram o contrato com o
próprio sangue: Latif aceitou.
Seis meses virando monstro
Submeteram-no a um treinamento brutal: Fonoaudiólogos
para copiar exatamente o jeito de Uday falar (rápido, sibilante, com aquele
sotaque arrogante de Bagdá rico). Cirurgias plásticas no nariz e no queixo.
Implantes dentários para reproduzir o sorriso
torto e os dentes de ouro de Uday. Aulas de postura, de como acender o charuto
cubano, de como bater em empregados sem deixar marcas visíveis.
Ao fim, quando colocaram os dois lado a lado
diante do espelho, até Saddam confundiu os dois por alguns segundos. “Perfeito”,
disse o ditador. “Agora meu filho tem sete vidas.”
Basra, 1990: o primeiro teste de fogo
Durante a invasão do Kuwait, Uday tinha pavor
de ir à linha de frente. Mandaram Latif. Em Basra, sob fogo cerrado iraniano, o
“Uday” apareceu de Lamborghini branco, óculos Ray-Ban, keffiyeh vermelha,
distribuindo maços de dólares e uísque escocês às tropas. Os soldados
enlouqueceram de alegria. Naquela noite, Latif tomou tantos tiros de festim e
gritos de “Ya Uday! Ya lion!” que quase acreditou ser ele mesmo o filho do
presidente.
Quando voltou a Bagdá, Uday deu um tapa nas
costas dele: “Você é melhor do que eu, seu filho da puta. Quase me matou de inveja.”
O monstro por dentro
Latif viu coisas que nenhum ser humano
deveria ver. Em uma festa no palácio, Uday apontou para uma adolescente de 14
anos que dançava: “Quero aquela.”
Na manhã seguinte, a menina foi devolvida à
família em pedaços dentro de um saco de lixo. Uday ria enquanto contava os
detalhes. Em 1996, já exilado na Europa, Latif deu uma entrevista histórica ao
programa HARDtalk da BBC.
Olhos fundos, voz tremendo de ódio, ele
disse: “Uday não era um psicopata. Psicopata tem método. Uday era pior: era o
mal puro. Uma vez pegou uma das mulheres mais bonitas do Iraque, violentou-a
durante dias, mandou arrancar os dentes dela com alicate e, quando se cansou,
jogou o corpo para os cães na rua. Eu vi. Eu estava lá, fingindo ser ele.”
Fuga e o filme
Latif desertou em 1991, durante a revolta
xiita após a Guerra do Golfo. Cruzou a fronteira para a Turquia com ajuda de
curdos, levou quatro balas no corpo e sobreviveu. Em 2011, sua história virou o
filme O Duplo do Diabo (título original: The Devil’s Double), dirigido por Lee
Tamahori e com Dominic Cooper no papel duplo de Uday/Latif.
O próprio Latif disse, ao ver o filme: “Eles
suavizaram. A realidade foi mil vezes pior.” Hoje, com mais de 60 anos, Latif
Yahia vive na Europa, casado, com filhos que nunca conheceram o avô Saddam.
Ainda recebe ameaças. Ainda acorda gritando à
noite. Porque há coisas que nem mil cirurgias plásticas conseguem apagar: o
rosto que ele foi obrigado a usar não era só o de Uday. Era o do diabo em
pessoa.









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