A meritocracia como ideologia da desigualdade disfarçada
Por trás
da aparente nobreza da “ética do merecimento”, a meritocracia esconde uma ética
muito mais crua: a do desempenho mensurável. Em uma sociedade marcada por
desigualdades estruturais de classe, raça, gênero, região e acesso à educação,
merecimento e desempenho raramente coincidem.
Mário de
Andrade e Drummond mereciam cadeiras na Academia Brasileira de Letras por sua
contribuição à literatura. Não as tiveram em vida. Já José Sarney, Roberto
Marinho, Paulo Coelho e dezenas de políticos, empresários e celebridades de
ocasião ocuparam (ou ocupam) aquelas poltronas - não exatamente por genialidade
literária, mas por desempenho político, midiático e comercial.
Mario
Quintana, um dos maiores poetas brasileiros do século XX, morreu pobre, morando
de favor no Hotel Majestic, em Porto Alegre. Paulo Coelho, autor de frases de
calendário, é um dos escritores mais ricos do planeta.
Um
produziu obra de valor literário inquestionável; o outro produziu desempenho de
mercado estratosférico. O menino nota 10 que mora debaixo da ponte da BR-116
talvez mereça ser médico mais do que muitos filhos de classe média alta que
entram na faculdade por cotas de escola privada cara ou por cursinho de elite.
Mas as
chances dele são quase nulas. O vestibular, o Enem, o Fies, a residência médica
- tudo foi desenhado para premiar quem já teve condições de “performar” desde o
berço.
Na
música popular a distância é abissal: Anitta, Ludmilla e Gusttavo Lima dominam
as paradas porque investem milhões em payola, playlists editoriais do Spotify,
jabá modernizado e estratégias de algoritmo.
Enquanto
isso, artistas como Belchior, Itamar Assumpção ou Douglas Germano - de valor
artístico incomensuravelmente superior - morreram (ou vivem) na penúria ou no
esquecimento.
O que realmente se mede na meritocracia?
A
meritocracia precisa de números. Merecimento, porém, é um juízo subjetivo de
valor - e valor não cabe em planilha. Então mede-se o que é mensurável: vendas,
citações, notas, likes, faturamento, índice h, aprovação no vestibular,
pontuação na CAPES.
Supõe-se
que desempenho seja espelho fiel do merecimento. É uma das maiores
falsificações ideológicas da modernidade. Na prática, tanto os critérios de
avaliação quanto os meios para se obter bom desempenho são moldados por
relações de poder. Alguns exemplos concretos:
Os
critérios da CAPES para ranquear programas de pós-graduação privilegiam
publicação em inglês em revistas indexadas por grandes editoras multinacionais
(Elsevier, Springer, Wiley).
Isso beneficia
as áreas e as universidades que já têm dinheiro para pagar article processing
charges (APCs) de até R$ 60 mil por artigo e para mandar professores para
congressos nos EUA e na Europa.
Programas
de excelência em regiões periféricas ou em áreas críticas (como estudos de
gênero, raça ou decoloniais) são punidos por não “performarem” nesses circuitos
globais brancos e ricos.
No
mercado editorial brasileiro, quem decide quais livros chegam às livrarias das
grandes redes e aos clubes de assinatura são quatro ou cinco grandes grupos
(Companhia das Letras, Record, Intrínseca, Rocco etc.). Eles investem pesado em
marketing para seus autores “comerciais”. Um romance literário de uma autora
negra periférica quase nunca recebe o mesmo tratamento.
O ENEM e
os vestibulares mais concorridos continuam privilegiando quem pode pagar 10-15
mil reais por ano de cursinho + escola privada de elite. As cotas ajudaram, mas
não resolvem o abismo de capital cultural acumulado ao longo de gerações.
A despolitização como arma política
O maior
golpe da meritocracia é apresentar-se como técnica, neutra, apolítica. “Aqui só
vale o mérito objetivo”, diz o discurso. Mas critérios nunca são neutros: são
sempre produzidos por alguém, em algum lugar, com interesses definidos.
Quando o
poder se esconde atrás de rankings, notas de corte, métricas bibliométricas e
“dados objetivos”, torna-se quase impossível combatê-lo. É a forma mais
sofisticada que a dominação encontrou no século XXI para se legitimar: não mais
pela força ou pela tradição, mas pela suposta racionalidade científica.
Como
disse o sociólogo francês Pierre Bourdieu, a meritocracia é a forma pela qual a
classe dominante consegue fazer com que os dominados aceitem a dominação como
justa: “Você não chegou lá porque não se esforçou o suficiente, não porque o
jogo estava viciado desde o início”.
A
racionalidade instrumental contra a racionalidade de valores. A meritocracia
substitui a pergunta “Isto tem valor em si?” pela pergunta “Isto performa bem
nas métricas vigentes?”. Assim: Estudantes não estudam para se tornar cidadãos
cultos, mas para passar no vestibular.
Professores
universitários não pesquisam para transformar a realidade brasileira, mas para
publicar em revistas Qualis A1 e subir no Lattes.
Escritores
não escrevem para expressar uma visão de mundo profunda, mas para vender 100
mil exemplares no primeiro mês.
Pais
escolhem escola pelo ranking do ENEM, não pelo projeto pedagógico.
O
resultado é uma sociedade que premia a adaptação cínica ao sistema em vez da
excelência humana genuína. Exemplos recentes que escancaram o mecanismo (2020-2025)
Durante
a pandemia, o Brasil viu médicos cubanos do Mais Médicos serem expulsos por
“falta de revalidação performática” do diploma, enquanto filhos de deputados
entravam em medicina por cotas de escola privada ou por decisões judiciais.
O caso
da influenciadora Virginia Fonseca, que em 2024 lançou um livro infantil que
vendeu 300 mil exemplares em pré-venda só com divulgação no Instagram, enquanto
Conceição Evaristo, uma das maiores escritoras vivas do Brasil, luta para ter
seus livros adotados em escolas.
A
ascensão meteórica de cantores de “piseiro” e “agronejo” que pagam milhões para
entrar nas playlists do Spotify, enquanto artistas como Baco Exu do Blues ou
Rico Dalasam precisam se matar de trabalhar para conseguir 1% dessa
visibilidade.
Conclusão
A
meritocracia não é apenas uma forma de organizar a sociedade. É a ideologia
mais bem-sucedida do capitalismo tardio porque transforma desigualdade
estrutural em fracasso individual e dá à dominação uma aparência racional,
científica e, portanto, inquestionável.
Enquanto
acreditarmos que quem está por cima chegou lá “porque mereceu” e quem está por
baixo ficou lá “porque não se esforçou”, o sistema seguirá reproduzindo-se
sozinho - sem precisar de tanques na rua, apenas de rankings, notas de corte e
currículos Lattes.
O maior
ato revolucionário hoje talvez seja lembrar que nem tudo que performa, mas nem
tudo que tem valor precisa performar. Se quiser, posso aprofundar algum ponto
específico (a crítica de Bourdieu e Passeron, o caso da pós-graduação
brasileira, o mercado editorial etc.).









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