A
meritocracia esconde, por trás de uma aparente e aceitável "ética do
merecimento", uma perversa "ética do desempenho".
Numa
sociedade de condições desiguais, pautada por lógicas mercantis e formada
por pessoas que tem não só características diferentes, mas também condições
diversas, merecimento e desempenho podem tomar rumos muito distantes.
Mário
Quintana merecia estar na ABL, mas não teve desempenho para tal.
O Paulo
Coelho, o Sarney e o Roberto Marinho estão (ou estiveram) lá, embora muitos
achem que não merecessem.
Quintana,
pelo imenso valor literário que tem, não merecia ter morrido pobre nem ter tido
que morar de favor em um hotel em Porto Alegre, mas quem amealhou fortuna com a
literatura foi o Coelho. Um tem inegável valor literário, outro tem desempenho
de mercado.
O José,
aquele menino nota 10 na escola que mora embaixo de uma ponte da BR 116 merece
ser médico, sua sonhada profissão, mas provavelmente não o será, pois não terá
condições para isto (rezo para estar errado neste caso).
Na
música popular nem é preciso exemplificar, a distância entre merecimento e
desempenho de mercado é abismal. Então, neste mundo em que vivemos valor e
resultado, merecimento e desempenho nem sempre caminham juntos, e talvez
raramente convirjam.
Mas a
meritocracia exige medidas, e o merecimento, que é um juízo de valor subjetivo,
não pode ser medido; portanto, o que se mede é o desempenho supondo-se que ele
seja um indicador do merecimento, o que está longe de ser.
Desta
forma, no mundo da meritocracia - que mais deveria se chamar "desempenhocracia"
- se confunde merecimento com desempenho, com larga vantagem para este último
como medida de mérito.
A
meritocracia escamoteia as reais operações de poder.
Como
avaliação e desempenho são cruciais na meritocracia, pois dão acesso a certas posições
de poder e a recursos, tanto os indicadores de avaliação como os meios que
levam a bons desempenhos são moldados por relações de poder; e o são
decisivamente.
Seria
ingênuo supor o contrário.
Assim,
os critérios de avaliação que ranqueiam os cursos de pós-graduação no país são
pautados pelas correntes mais poderosas do meio acadêmico e científico.
Bons
desempenhos no mercado literário são produzidos não só por uma boa literatura,
mas por grandes investimentos em marketing; grandes sucessos no meio musical
são conseguidos, dentre outras formas, "promovendo" as músicas nas
rádios e em programas de televisão, e assim por diante.
Os
poderes econômicos e político, não raras vezes, estão por trás dos critérios
avaliativos e dos "bons” desempenhos.
Critérios
avaliativos e medidas de desempenho são moldáveis conforme os interesses
dominantes, e os interesses são a razão de ser das operações de poder; que, por
sua vez, são a matéria prima de toda a atividade política.
Então,
por trás da cortina de fumaça da meritocracia repousa toda a estrutura de poder
da sociedade.
Até aí
tudo bem, isso ocorre na maioria dos sistemas políticos, econômicos e sociais.
O
problema é que, sob o manto da suposta "objetividade" dos critérios
de avaliação e desempenho, a meritocracia esconde estas relações de poder,
sugerindo uma sociedade tecnicamente organizada e isenta da ingerência
política.
Nada
mais ilusório e nada mais perigoso, pois a pior política é aquela que
despolitiza, e o pior poder, o mais difícil de enfrentar e de combater, é
aquele que nega a si mesmo, que se oculta para não ser visto.
A
meritocracia é a única ideologia que institui a desigualdade social com
fundamentos "racionais", e legitima pela razão toda a forma de
dominação (talvez a mais insidiosa forma de legitimação da modernidade).
A
dominação e o poder ganham roupagens racionais, fundamentos científicos e bases
de conhecimento, o que dá a eles uma aparente naturalidade e
inquestionabilidade: é como se dominados e dominadores concordassem
racionalmente sobre os termos da dominação.
A
meritocracia substitui a racionalidade baseada nos valores, nos fins, pela
racionalidade instrumental, baseada na adequação dos meios aos resultados
esperados.
Para a
meritocracia não vale a pena ser o Quintana, não é racional, embora seus poemas
fossem a própria exacerbação de si, de sua substância, de seus valores
artísticos.
Vale
mais a pena ser o Paulo Coelho e fazer uma literatura calibrada para vender.
Da
mesma forma, muitos pais acham mais racional escolher a escola dos seus filhos
não pelos fundamentos de conhecimento e valores que ela contém, mas pelo índice
de aprovação no vestibular que ela apresenta.
Estudantes
geralmente não estudam para aprender, estudam para passar em provas.
Cursos
de pós-graduação e professores universitários não produzem conhecimentos e
publicam artigos e livros para fazerem a diferença no mundo, para terem um
significado na pesquisa e na vida intelectual do país, mas sim para engrossarem
o seu Lattes e para ficarem bem ranqueados.
A
meritocracia exige uma complexa rede de avaliações objetivas para distribuir e
justificar as pessoas nas diferentes posições de autoridade e poder na
sociedade, e estas avaliações funcionam como guiões para as decisões e ações
humanas.
Assim,
em uma sociedade meritocrática, a racionalidade dirige a ação para a escolha
dos meios necessários para se ter um bom desempenho nestes processos
avaliativos, ao invés de dirigi-la para valores, princípios ou convicções
pessoais e sociais.
A/D
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