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segunda-feira, dezembro 08, 2025

Meritocracia



A meritocracia como ideologia da desigualdade disfarçada

Por trás da aparente nobreza da “ética do merecimento”, a meritocracia esconde uma ética muito mais crua: a do desempenho mensurável. Em uma sociedade marcada por desigualdades estruturais de classe, raça, gênero, região e acesso à educação, merecimento e desempenho raramente coincidem.

Mário de Andrade e Drummond mereciam cadeiras na Academia Brasileira de Letras por sua contribuição à literatura. Não as tiveram em vida. Já José Sarney, Roberto Marinho, Paulo Coelho e dezenas de políticos, empresários e celebridades de ocasião ocuparam (ou ocupam) aquelas poltronas - não exatamente por genialidade literária, mas por desempenho político, midiático e comercial.

Mario Quintana, um dos maiores poetas brasileiros do século XX, morreu pobre, morando de favor no Hotel Majestic, em Porto Alegre. Paulo Coelho, autor de frases de calendário, é um dos escritores mais ricos do planeta.

Um produziu obra de valor literário inquestionável; o outro produziu desempenho de mercado estratosférico. O menino nota 10 que mora debaixo da ponte da BR-116 talvez mereça ser médico mais do que muitos filhos de classe média alta que entram na faculdade por cotas de escola privada cara ou por cursinho de elite.

Mas as chances dele são quase nulas. O vestibular, o Enem, o Fies, a residência médica - tudo foi desenhado para premiar quem já teve condições de “performar” desde o berço.

Na música popular a distância é abissal: Anitta, Ludmilla e Gusttavo Lima dominam as paradas porque investem milhões em payola, playlists editoriais do Spotify, jabá modernizado e estratégias de algoritmo.

Enquanto isso, artistas como Belchior, Itamar Assumpção ou Douglas Germano - de valor artístico incomensuravelmente superior - morreram (ou vivem) na penúria ou no esquecimento.

O que realmente se mede na meritocracia?

A meritocracia precisa de números. Merecimento, porém, é um juízo subjetivo de valor - e valor não cabe em planilha. Então mede-se o que é mensurável: vendas, citações, notas, likes, faturamento, índice h, aprovação no vestibular, pontuação na CAPES.

Supõe-se que desempenho seja espelho fiel do merecimento. É uma das maiores falsificações ideológicas da modernidade. Na prática, tanto os critérios de avaliação quanto os meios para se obter bom desempenho são moldados por relações de poder. Alguns exemplos concretos:

Os critérios da CAPES para ranquear programas de pós-graduação privilegiam publicação em inglês em revistas indexadas por grandes editoras multinacionais (Elsevier, Springer, Wiley).

Isso beneficia as áreas e as universidades que já têm dinheiro para pagar article processing charges (APCs) de até R$ 60 mil por artigo e para mandar professores para congressos nos EUA e na Europa.

Programas de excelência em regiões periféricas ou em áreas críticas (como estudos de gênero, raça ou decoloniais) são punidos por não “performarem” nesses circuitos globais brancos e ricos.

No mercado editorial brasileiro, quem decide quais livros chegam às livrarias das grandes redes e aos clubes de assinatura são quatro ou cinco grandes grupos (Companhia das Letras, Record, Intrínseca, Rocco etc.). Eles investem pesado em marketing para seus autores “comerciais”. Um romance literário de uma autora negra periférica quase nunca recebe o mesmo tratamento.

O ENEM e os vestibulares mais concorridos continuam privilegiando quem pode pagar 10-15 mil reais por ano de cursinho + escola privada de elite. As cotas ajudaram, mas não resolvem o abismo de capital cultural acumulado ao longo de gerações.

A despolitização como arma política

O maior golpe da meritocracia é apresentar-se como técnica, neutra, apolítica. “Aqui só vale o mérito objetivo”, diz o discurso. Mas critérios nunca são neutros: são sempre produzidos por alguém, em algum lugar, com interesses definidos.

Quando o poder se esconde atrás de rankings, notas de corte, métricas bibliométricas e “dados objetivos”, torna-se quase impossível combatê-lo. É a forma mais sofisticada que a dominação encontrou no século XXI para se legitimar: não mais pela força ou pela tradição, mas pela suposta racionalidade científica.

Como disse o sociólogo francês Pierre Bourdieu, a meritocracia é a forma pela qual a classe dominante consegue fazer com que os dominados aceitem a dominação como justa: “Você não chegou lá porque não se esforçou o suficiente, não porque o jogo estava viciado desde o início”.

A racionalidade instrumental contra a racionalidade de valores. A meritocracia substitui a pergunta “Isto tem valor em si?” pela pergunta “Isto performa bem nas métricas vigentes?”. Assim: Estudantes não estudam para se tornar cidadãos cultos, mas para passar no vestibular.

Professores universitários não pesquisam para transformar a realidade brasileira, mas para publicar em revistas Qualis A1 e subir no Lattes.

Escritores não escrevem para expressar uma visão de mundo profunda, mas para vender 100 mil exemplares no primeiro mês.

Pais escolhem escola pelo ranking do ENEM, não pelo projeto pedagógico.

O resultado é uma sociedade que premia a adaptação cínica ao sistema em vez da excelência humana genuína. Exemplos recentes que escancaram o mecanismo (2020-2025)

Durante a pandemia, o Brasil viu médicos cubanos do Mais Médicos serem expulsos por “falta de revalidação performática” do diploma, enquanto filhos de deputados entravam em medicina por cotas de escola privada ou por decisões judiciais.

O caso da influenciadora Virginia Fonseca, que em 2024 lançou um livro infantil que vendeu 300 mil exemplares em pré-venda só com divulgação no Instagram, enquanto Conceição Evaristo, uma das maiores escritoras vivas do Brasil, luta para ter seus livros adotados em escolas.

A ascensão meteórica de cantores de “piseiro” e “agronejo” que pagam milhões para entrar nas playlists do Spotify, enquanto artistas como Baco Exu do Blues ou Rico Dalasam precisam se matar de trabalhar para conseguir 1% dessa visibilidade.

Conclusão

A meritocracia não é apenas uma forma de organizar a sociedade. É a ideologia mais bem-sucedida do capitalismo tardio porque transforma desigualdade estrutural em fracasso individual e dá à dominação uma aparência racional, científica e, portanto, inquestionável.

Enquanto acreditarmos que quem está por cima chegou lá “porque mereceu” e quem está por baixo ficou lá “porque não se esforçou”, o sistema seguirá reproduzindo-se sozinho - sem precisar de tanques na rua, apenas de rankings, notas de corte e currículos Lattes.

O maior ato revolucionário hoje talvez seja lembrar que nem tudo que performa, mas nem tudo que tem valor precisa performar. Se quiser, posso aprofundar algum ponto específico (a crítica de Bourdieu e Passeron, o caso da pós-graduação brasileira, o mercado editorial etc.).

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