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domingo, janeiro 22, 2023

A Violência

 


A ideia de que a cidade grande modifica o homem, para pior, é uma das crenças modernas mais difundidas. As grandes concentrações urbanas tornam mais evidente o que sempre existiu nele, nascido no egocentrismo comum e conservado na ignorância da própria realidade.

O relacionamento interpessoal mais estreito e frequente produz no habitante dos centros populosos uma concentração de experiências que torna agudos os problemas individuais.

Aquilo que num meio mais rarefeito seria dissolvido, ali reforça as características e agrava seus males. O homem é colocado com dramática insistência diante do espelho das ações alheias, onde vê a todo instante sua própria ação e suas contradições.

O aumento da tensão decorre dessa efervescência em espaço limitado, com o individual e o coletivo influenciando-se reciprocamente, e elevando a temperatura até o espasmo da violência. Culpar o grande aglomerado é tão frívolo quanto responsabilizar a febre pela enfermidade.

A inflação, a fome, as desigualdades sociais interferem muito na vida de uma coletividade, mas influem pouco na eclosão de um surto de violência, ou no crescimento aparentemente repentino da criminalidade.

A menos que a explicação seja usada como denúncia de efeito político, não há por que dar ênfase a esses fatores na busca de entendimento para a questão. Nem sempre, onde os desequilíbrios sociais são mais evidentes, a violência é maior.

Melhor será examinar outros aspectos, embora reconhecendo que aquela concepção tosca satisfaz perfeitamente os que querem qualquer explicação e que por natureza são menos exigentes. 

O problema da violência não pode ser compreendido à luz das grandes crises, através do noticiário policial, do ângulo das estatísticas, ou qualquer coisa do gênero. Não é a grande violência que interessa, mas a pequenina, disfarçada no dia-a-dia, na ação e no pensamento do homem que se considera pacífico.

Talvez aí esteja tudo o que precisamos saber sobre a brutalidade que ganha as páginas dos jornais e pinta um quadro terrível das grandes cidades. Os assaltos planejados, os sequestros bem premeditados, a liquidação de criminosos por bandos particulares, são culminâncias.

O que precisa ser conhecido, sem desculpas ou atenuantes, é resto do iceberg, mal dissimulado no cotidiano do homem comum, no motorista que dirige a caminho do emprego, no funcionário que atende por trás de um balcão, no cidadão anônimo que defende a pena de morte numa entrevista apressada de rua, na mulher que arrasta o filho pequeno numa calçada cheia de gente.

Esse conhecimento não pode ser começado de fora para dentro. É preciso iniciar na raiz, na câmara escura que está escondida de todas as aparências do mundo. Cada homem terá de começar a descobrir a sua violência, a única que está a seu alcance.

A tendência para observar os problemas "fora de nós" é quase irresistível, e a razão disso é óbvia: estamos absolvidos, nada temos a fazer, nosso estimado ego está a salvo.

No caso da responsabilidade pela violência crescente nas grandes cidades, é flagrante a infantilidade dos que teimam em ver a solução dependendo "dos outros", de uma revolução, da reforma urbana, da adoção de determinado regime político, da conversão a uma nova corrente, etc.

Como as crianças às vezes fazem, pomos a culpa em alguma coisa alheia a nós. O adequado seria deixar de lado a ideia de culpa, antes de qualquer coisa, depois descobrir em que medida estamos também envolvidos nisso censuramos e que modo somos o que queremos rejeitar.

Isso não é nada filosófico, metafísico ou místico, é um fato simples que pode ser verificado. Nossas preocupações com a sociedade não chegam a ser sinceras e não há nada a fazer exceto constatar como nos enganamos com tudo isso, todo o tempo.

O envolvimento de cada homem no processo cultural da violência varia de acordo com sua submissão às pressões da moda, aos valores vigentes. O regime político, a organização econômica tem pouca importância no caso. Sob qualquer sistema, somos mais ou menos envolvidos, conforme nossa capacidade de ver, ouvir, entender.

A violência escondida no homem comum - às vezes naquele que se considera um pacifista - é bem mais reveladora do processo geral da violência do que qualquer outra coisa.

A descoberta das nossas limitações nos outros é especialmente desagradável, mas, por outro lado, é aliviadora. A revelação incômoda de que, afinal, somos como todo mundo, e temos em nós o vilão e o herói, é comumente superficial.

De fato, só é desconfortável porque passa muito por cima os fatos. Se penetrasse um pouco mais em sua crosta, faria uma constatação pura e simples, sem qualquer conotação pessoal ou impressão subjetiva.

Vemos claramente a violência, desde que não seja em nós. Se desconfiarmos que está em nós, culpamos logo a sociedade, o sistema, a cidade grande, as provocações que sofremos.

Depois, temos olhos somente para os grandes eventos, para os acontecimentos maiores - a culminância de um processo que começou pequenino e vive em nós residualmente. A violência dos nossos pensamentos, desejos, disfarces, ambições, anseios, é da mesma essência daquela que ganha os títulos dos jornais de sensação.

Os livros que lemos, a TV e o cinema com que nos divertimos, os comentários que fazemos, o futebol que nos distrai, a maneira como negociamos e o modo como nos relacionamos com os mais humildes, estão impregnados da violência que nas suas manifestações mais visíveis e concentradas nos parece tão repulsiva.

Henry David Thoreau escreveu uma vez que "ver-se a si mesmo é tão difícil quanto olhar para trás sem virar a cabeça". Talvez seja necessário apenas dar uma meia volta completa.

          Luiz Carlos Lisboa - O Som do Silêncio 

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