A
ideia de que a cidade grande modifica o homem, para pior, é uma das
crenças modernas mais difundidas. As grandes concentrações urbanas tornam mais
evidente o que sempre existiu nele, nascido no egocentrismo comum e conservado
na ignorância da própria realidade.
O
relacionamento interpessoal mais estreito e frequente produz no habitante dos
centros populosos uma concentração de experiências que torna agudos os problemas
individuais.
Aquilo
que num meio mais rarefeito seria dissolvido, ali reforça as características e
agrava seus males. O homem é colocado com dramática insistência diante do
espelho das ações alheias, onde vê a todo instante sua própria ação e suas
contradições.
O
aumento da tensão decorre dessa efervescência em espaço limitado, com o
individual e o coletivo influenciando-se reciprocamente, e elevando a
temperatura até o espasmo da violência. Culpar o grande aglomerado é tão
frívolo quanto responsabilizar a febre pela enfermidade.
A
inflação, a fome, as desigualdades sociais interferem muito na vida de uma
coletividade, mas influem pouco na eclosão de um surto de violência, ou no
crescimento aparentemente repentino da criminalidade.
A menos
que a explicação seja usada como denúncia de efeito político, não há por que
dar ênfase a esses fatores na busca de entendimento para a questão. Nem sempre,
onde os desequilíbrios sociais são mais evidentes, a violência é maior.
Melhor
será examinar outros aspectos, embora reconhecendo que aquela concepção tosca
satisfaz perfeitamente os que querem qualquer explicação e que por natureza são
menos exigentes.
O
problema da violência não pode ser compreendido à luz das grandes crises,
através do noticiário policial, do ângulo das estatísticas, ou qualquer coisa
do gênero. Não é a grande violência que interessa, mas a pequenina, disfarçada
no dia-a-dia, na ação e no pensamento do homem que se considera pacífico.
Talvez
aí esteja tudo o que precisamos saber sobre a brutalidade que ganha as páginas
dos jornais e pinta um quadro terrível das grandes cidades. Os assaltos
planejados, os sequestros bem premeditados, a liquidação de criminosos por
bandos particulares, são culminâncias.
O que
precisa ser conhecido, sem desculpas ou atenuantes, é resto do iceberg, mal
dissimulado no cotidiano do homem comum, no motorista que dirige a caminho do
emprego, no funcionário que atende por trás de um balcão, no cidadão anônimo
que defende a pena de morte numa entrevista apressada de rua, na mulher que
arrasta o filho pequeno numa calçada cheia de gente.
Esse
conhecimento não pode ser começado de fora para dentro. É preciso iniciar
na raiz, na câmara escura que está escondida de todas as aparências do mundo.
Cada homem terá de começar a descobrir a sua violência, a única que está a seu
alcance.
A
tendência para observar os problemas "fora de nós" é quase
irresistível, e a razão disso é óbvia: estamos absolvidos, nada temos a fazer,
nosso estimado ego está a salvo.
No caso
da responsabilidade pela violência crescente nas grandes cidades, é flagrante a
infantilidade dos que teimam em ver a solução dependendo "dos
outros", de uma revolução, da reforma urbana, da adoção de determinado
regime político, da conversão a uma nova corrente, etc.
Como as
crianças às vezes fazem, pomos a culpa em alguma coisa alheia a nós. O adequado
seria deixar de lado a ideia de culpa, antes de qualquer coisa, depois
descobrir em que medida estamos também envolvidos nisso censuramos e que modo
somos o que queremos rejeitar.
Isso
não é nada filosófico, metafísico ou místico, é um fato simples que pode ser
verificado. Nossas preocupações com a sociedade não chegam a ser sinceras
e não há nada a fazer exceto constatar como nos enganamos com tudo isso, todo o
tempo.
O
envolvimento de cada homem no processo cultural da violência varia de acordo
com sua submissão às pressões da moda, aos valores vigentes. O regime político,
a organização econômica tem pouca importância no caso. Sob qualquer sistema,
somos mais ou menos envolvidos, conforme nossa capacidade de ver, ouvir,
entender.
A
violência escondida no homem comum - às vezes naquele que se considera um
pacifista - é bem mais reveladora do processo geral da violência do que
qualquer outra coisa.
A
descoberta das nossas limitações nos outros é especialmente desagradável, mas,
por outro lado, é aliviadora. A revelação incômoda de que, afinal, somos como
todo mundo, e temos em nós o vilão e o herói, é comumente superficial.
De
fato, só é desconfortável porque passa muito por cima os fatos. Se penetrasse
um pouco mais em sua crosta, faria uma constatação pura e simples, sem qualquer
conotação pessoal ou impressão subjetiva.
Vemos
claramente a violência, desde que não seja em nós. Se desconfiarmos
que está em nós, culpamos logo a sociedade, o sistema, a cidade grande, as
provocações que sofremos.
Depois,
temos olhos somente para os grandes eventos, para os acontecimentos maiores - a
culminância de um processo que começou pequenino e vive em nós residualmente. A
violência dos nossos pensamentos, desejos, disfarces, ambições, anseios, é da mesma
essência daquela que ganha os títulos dos jornais de sensação.
Os
livros que lemos, a TV e o cinema com que nos divertimos, os comentários que
fazemos, o futebol que nos distrai, a maneira como negociamos e o modo como nos
relacionamos com os mais humildes, estão impregnados da violência que nas suas
manifestações mais visíveis e concentradas nos parece tão repulsiva.
Henry
David Thoreau escreveu uma vez que "ver-se a si mesmo é tão difícil quanto
olhar para trás sem virar a cabeça". Talvez seja necessário apenas dar uma
meia volta completa.
Luiz Carlos Lisboa - O Som do Silêncio
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