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segunda-feira, agosto 26, 2024

Vietnã - Não sei

 


Vietnã, de Wisława Szymborska

“Mulher, como você se chama? - Não sei.

Quando você nasceu, de onde você vem? - Não sei.

Para que cavou uma toca na terra? - Não sei.

Desde quando está aqui escondida? - Não sei.

Por que mordeu o meu dedo anular? - Não sei.

Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? - Não sei.

De que lado você está? - Não sei.

É a guerra, você tem que escolher. - Não sei.

Tua aldeia ainda existe? - Não sei.

Esses são teus filhos? - São.”

(Tradução de Regina Przybycien)

Há poemas que, desde a primeira leitura, cravam-se na memória como lâminas, cortando fundo e deixando cicatrizes que não explicam, mas revelam. “Vietnã”, da poeta polonesa Wisława Szymborska, é um desses.

O título, seco e cortante, já nos situa de imediato no coração de uma guerra insana - a Guerra do Vietnã, um conflito que, entre as décadas de 1950 e 1970, devastou não apenas corpos, mas identidades, memórias e esperanças.

A palavra “Vietnã” não é apenas um nome geográfico; é um símbolo de destruição, de uma violência que desumaniza e reduz o indivíduo a escombros.

A estrutura do poema, com sua forma de interrogatório, é uma escolha poética brilhante. Desde o primeiro verso, o vocativo “Mulher” estabelece uma fala direta, quase acusatória, como se o interlocutor - talvez um soldado, um jornalista, ou até mesmo o leitor - exigisse respostas de alguém que já não as possui.

Cada pergunta é um golpe, e cada resposta, um eco: “Não sei”. Esse refrão, repetido como um mantra, não é apenas a expressão de ignorância, mas a confissão de uma perda irreparável.

A mulher não sabe seu nome, sua origem, seu propósito, nem mesmo o tempo que passou escondida na toca que cavou na terra. Essa repetição, que ressoa como o “Nunca mais” do corvo de Edgar Allan Poe, cresce em intensidade, acumulando desespero e vazio.

É como se a guerra tivesse apagado não apenas a aldeia, os laços sociais e a história pessoal dessa mulher, mas também sua própria noção de existência.

O cenário evocado é de uma desolação absoluta. A toca na terra sugere um refúgio precário, um espaço de sobrevivência instintiva, onde a mulher se esconde não apenas de bombas e balas, mas da própria realidade.

A mordida no dedo anular - um gesto animalesco, quase irracional - reforça a ideia de que a guerra a reduziu a um estado de puro instinto, onde a confiança foi substituída pelo medo e pela desconfiança.

Mesmo a pergunta “Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal?” soa irônica, quase cruel, diante do contexto de um conflito que não poupava inocentes.

A guerra, como o poema sugere, não oferece escolhas claras: “É a guerra, você tem que escolher. - Não sei.” Aqui, a recusa em tomar partido não é covardia, mas a constatação de que, para a vítima, os lados se confundem na mesma violência.

A aldeia, que talvez tenha sido o último resquício de comunidade e pertencimento, também se dissolve no “Não sei”. É um símbolo da destruição não apenas física, mas cultural e emocional, que a guerra impõe.

A repetição do “Não sei” vai construindo, verso a verso, um retrato de desmoronamento: a terra, o esconderijo, o corpo, os inimigos, os amigos, a aldeia - tudo se desfaz na solidão das respostas, transmitindo uma incômoda sensação de desespero e impotência.

A mulher, despojada de sua identidade, parece à beira da loucura, como se a guerra tivesse corroído até mesmo sua capacidade de compreender o mundo. E quem poderia julgá-la?

A Guerra do Vietnã, com seus bombardeios de napalm, vilarejos incinerados e milhões de mortos e deslocados, é um pano de fundo que justifica o colapso mental e emocional dessa figura anônima.

No entanto, Szymborska, com sua simplicidade explosiva, subverte toda a estrutura de devastação que o poema constrói. O último verso, “Esses são teus filhos? – São.”, é uma virada poética de uma força avassaladora.

Com uma única palavra, “São”, no presente do indicativo, a poeta polonesa realiza uma operação magistral: inverte o sinal da destruição e introduz, sem mencioná-la diretamente, a ideia de amor.

A maternidade emerge como um signo de resistência indizível, uma afirmação de vida em meio ao caos. Essa mulher, que perdeu nome, origem, história e até a sanidade, ainda reconhece seus filhos.

É como se, nesse instante, o eu lírico erguesse a cabeça, olhasse nos olhos do leitor e declarasse, com uma dignidade inquebrantável, que a guerra pode destruir tudo, menos o vínculo primordial entre mãe e filhos.

Esse final é ainda mais poderoso quando consideramos o contexto histórico. A Guerra do Vietnã não foi apenas um conflito militar, mas uma tragédia humanitária que deixou cicatrizes profundas em gerações.

As mães vietnamitas, muitas vezes, foram as últimas guardiãs da memória e da continuidade de suas comunidades, protegendo seus filhos em meio a bombardeios, fome e deslocamentos forçados.

Szymborska, embora polonesa e escrevendo de uma perspectiva externa, capta essa universalidade do sofrimento humano e da resiliência materna. Sua poesia não romantiza a guerra, mas ilumina a força daqueles que, mesmo devastados, encontram algo pelo qual lutar.

A escolha de Szymborska por uma linguagem despojada, quase minimalista, amplifica o impacto do poema. Não há adornos, metáforas elaboradas ou imagens grandiosas.

A força está na crueza das perguntas e na simplicidade das respostas, que refletem a brutalidade de um mundo onde até as certezas mais básicas são arrancadas.

O poema, assim, não apenas retrata a guerra, mas questiona o próprio ato de interrogar, de exigir respostas de quem já foi despojado de tudo. E, ao final, com a afirmação “São”, Szymborska nos lembra que, mesmo na mais profunda escuridão, há algo que resiste: o amor, a vida, a humanidade.

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