Vietnã, de Wisława Szymborska
“Mulher,
como você se chama? - Não sei.
Quando
você nasceu, de onde você vem? - Não sei.
Para
que cavou uma toca na terra? - Não sei.
Desde
quando está aqui escondida? - Não sei.
Por que
mordeu o meu dedo anular? - Não sei.
Não
sabe que não vamos te fazer nenhum mal? - Não sei.
De que
lado você está? - Não sei.
É a
guerra, você tem que escolher. - Não sei.
Tua
aldeia ainda existe? - Não sei.
Esses
são teus filhos? - São.”
(Tradução
de Regina Przybycien)
Há
poemas que, desde a primeira leitura, cravam-se na memória como lâminas,
cortando fundo e deixando cicatrizes que não explicam, mas revelam. “Vietnã”,
da poeta polonesa Wisława Szymborska, é um desses.
O
título, seco e cortante, já nos situa de imediato no coração de uma guerra
insana - a Guerra do Vietnã, um conflito que, entre as décadas de 1950 e 1970,
devastou não apenas corpos, mas identidades, memórias e esperanças.
A
palavra “Vietnã” não é apenas um nome geográfico; é um símbolo de destruição,
de uma violência que desumaniza e reduz o indivíduo a escombros.
A
estrutura do poema, com sua forma de interrogatório, é uma escolha poética
brilhante. Desde o primeiro verso, o vocativo “Mulher” estabelece uma fala
direta, quase acusatória, como se o interlocutor - talvez um soldado, um
jornalista, ou até mesmo o leitor - exigisse respostas de alguém que já não as
possui.
Cada
pergunta é um golpe, e cada resposta, um eco: “Não sei”. Esse refrão, repetido
como um mantra, não é apenas a expressão de ignorância, mas a confissão de uma
perda irreparável.
A
mulher não sabe seu nome, sua origem, seu propósito, nem mesmo o tempo que
passou escondida na toca que cavou na terra. Essa repetição, que ressoa como o
“Nunca mais” do corvo de Edgar Allan Poe, cresce em intensidade, acumulando
desespero e vazio.
É como
se a guerra tivesse apagado não apenas a aldeia, os laços sociais e a história
pessoal dessa mulher, mas também sua própria noção de existência.
O
cenário evocado é de uma desolação absoluta. A toca na terra sugere um refúgio
precário, um espaço de sobrevivência instintiva, onde a mulher se esconde não
apenas de bombas e balas, mas da própria realidade.
A
mordida no dedo anular - um gesto animalesco, quase irracional - reforça a
ideia de que a guerra a reduziu a um estado de puro instinto, onde a confiança
foi substituída pelo medo e pela desconfiança.
Mesmo a
pergunta “Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal?” soa irônica, quase
cruel, diante do contexto de um conflito que não poupava inocentes.
A
guerra, como o poema sugere, não oferece escolhas claras: “É a guerra, você tem
que escolher. - Não sei.” Aqui, a recusa em tomar partido não é covardia, mas a
constatação de que, para a vítima, os lados se confundem na mesma violência.
A
aldeia, que talvez tenha sido o último resquício de comunidade e pertencimento,
também se dissolve no “Não sei”. É um símbolo da destruição não apenas física,
mas cultural e emocional, que a guerra impõe.
A
repetição do “Não sei” vai construindo, verso a verso, um retrato de
desmoronamento: a terra, o esconderijo, o corpo, os inimigos, os amigos, a
aldeia - tudo se desfaz na solidão das respostas, transmitindo uma incômoda
sensação de desespero e impotência.
A
mulher, despojada de sua identidade, parece à beira da loucura, como se a
guerra tivesse corroído até mesmo sua capacidade de compreender o mundo. E quem
poderia julgá-la?
A
Guerra do Vietnã, com seus bombardeios de napalm, vilarejos incinerados e
milhões de mortos e deslocados, é um pano de fundo que justifica o colapso
mental e emocional dessa figura anônima.
No
entanto, Szymborska, com sua simplicidade explosiva, subverte toda a estrutura
de devastação que o poema constrói. O último verso, “Esses são teus filhos? –
São.”, é uma virada poética de uma força avassaladora.
Com uma
única palavra, “São”, no presente do indicativo, a poeta polonesa realiza uma
operação magistral: inverte o sinal da destruição e introduz, sem mencioná-la
diretamente, a ideia de amor.
A
maternidade emerge como um signo de resistência indizível, uma afirmação de
vida em meio ao caos. Essa mulher, que perdeu nome, origem, história e até a
sanidade, ainda reconhece seus filhos.
É como
se, nesse instante, o eu lírico erguesse a cabeça, olhasse nos olhos do leitor
e declarasse, com uma dignidade inquebrantável, que a guerra pode destruir
tudo, menos o vínculo primordial entre mãe e filhos.
Esse
final é ainda mais poderoso quando consideramos o contexto histórico. A Guerra
do Vietnã não foi apenas um conflito militar, mas uma tragédia humanitária que
deixou cicatrizes profundas em gerações.
As mães
vietnamitas, muitas vezes, foram as últimas guardiãs da memória e da
continuidade de suas comunidades, protegendo seus filhos em meio a bombardeios,
fome e deslocamentos forçados.
Szymborska,
embora polonesa e escrevendo de uma perspectiva externa, capta essa
universalidade do sofrimento humano e da resiliência materna. Sua poesia não
romantiza a guerra, mas ilumina a força daqueles que, mesmo devastados,
encontram algo pelo qual lutar.
A
escolha de Szymborska por uma linguagem despojada, quase minimalista, amplifica
o impacto do poema. Não há adornos, metáforas elaboradas ou imagens grandiosas.
A força
está na crueza das perguntas e na simplicidade das respostas, que refletem a
brutalidade de um mundo onde até as certezas mais básicas são arrancadas.
O
poema, assim, não apenas retrata a guerra, mas questiona o próprio ato de
interrogar, de exigir respostas de quem já foi despojado de tudo. E, ao final,
com a afirmação “São”, Szymborska nos lembra que, mesmo na mais profunda
escuridão, há algo que resiste: o amor, a vida, a humanidade.
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