Os Pântanos do Sul do Iraque: O Jardim do Éden, uma Veneza Mesopotâmica Quase Perdida
Os pântanos do sul do Iraque, conhecidos como
Ahwar ou pântanos mesopotâmicos, são frequentemente descritos como um paraíso
quase perdido, uma vasta zona úmida que muitos estudiosos bíblicos associam ao
Jardim do Éden descrito no Gênesis.
Alimentados pelos rios Tigre e Eufrates,
esses pântanos formam um dos maiores sistemas de delta interior do mundo em um
ambiente árido e quente, abrigando uma biodiversidade rica e uma cultura
milenar única.
Aqui viveu por milênios o povo conhecido como
Ma'dan (ou Árabes dos Pântanos), uma comunidade seminômade que desenvolveu uma
vida em harmonia com a água.
Sua cultura é comparada a uma "Veneza da
Mesopotâmia": casas construídas sobre ilhas flutuantes ou diretamente na
água, navegando em canoas estreitas chamadas mashoof, criando búfalos de água,
pescando e colhendo juncos.
A Arquitetura Única dos Mudhif
O símbolo mais impressionante dessa cultura é
o mudhif, uma grande casa cerimonial construída inteiramente com juncos colhidos
nos pântanos. Essas estruturas arqueadas, sem pregos, madeira ou vidro, são
erguidas em apenas alguns dias por equipes comunitárias.
Feixes de juncos formam colunas e arcos
impressionantes, cobertos por esteiras tecidas, uma técnica sustentável que remonta
a pelo menos 5.000 anos, evidenciada em relevos sumérios antigos.
O mudhif serve como casa de hóspedes tribal,
local para casamentos, funerais e reuniões, simbolizando hospitalidade: sua
porta permanece sempre aberta. Mantido pelo xeque local, ele reflete a
organização social dos Ma'dan.
Nas últimas décadas, essa arquitetura quase
desapareceu devido à destruição ambiental, mas esforços recentes visam
preservá-la, inclusive com reconhecimento pela UNESCO como patrimônio
imaterial.
A Destruição: Uma Catástrofe Ambiental e Humana
Por séculos, os pântanos serviram como
refúgio para fugitivos, escravos rebeldes e dissidentes, uma característica que
selou seu destino no século XX.
Após a revolta xiita de 1991 contra Saddam
Hussein, inspirada pela derrota iraquiana na Guerra do Golfo, o regime viu os
Ma'dan como traidores. Saddam ordenou a drenagem sistemática dos pântanos:
canais gigantescos, como o "Rio Saddam" ou Terceiro Rio, desviaram a
água, diques bloquearam os rios, e áreas foram incendiadas ou envenenadas.
Em poucos anos, mais de 90% dos 20.000 km²
originais viraram deserto salino. A população Ma'dan, que chegava a 500.000 nos
anos 1950, caiu para cerca de 20.000, com centenas de milhares deslocados para
cidades ou campos de refugiados.
A biodiversidade colapsou: aves migratórias,
peixes e mamíferos desapareceram, e a ONU classificou o evento como uma das
maiores catástrofes ambientais da história, um "ecocídio" combinado com
perseguição étnica.
A Recuperação e os Desafios Atuais
Após a queda de Saddam em 2003, comunidades
locais romperam diques, permitindo que a água retornasse. Iniciativas como o
projeto Eden Again, liderado pelo engenheiro iraquiano-americano Azzam Alwash e
a ONG Nature Iraq, coordenaram esforços internacionais, com apoio de EUA,
Canadá, Itália e Japão, para restaurar os pântanos.
Até meados dos anos 2010, cerca de 50-70% da
área foi recuperada, com retorno de aves, peixes e búfalos. Em 2016, os Ahwar
foram inscritos como Patrimônio Mundial da UNESCO, reconhecendo tanto o valor
natural (biodiversidade) quanto cultural (cidades sumérias antigas como Ur,
Uruk e Eridu).
Hoje, algumas casas mudhif funcionam como
hospedagens ecológicas, atraindo turistas que compartilham refeições com os
Ma'dan e discutem o futuro da região. No entanto, o paraíso permanece frágil.
Barragens rio acima na Turquia, Síria e Irã reduzem o fluxo de água, agravado
por secas intensas devido às mudanças climáticas.
Estudos recentes indicam déficits hídricos
crescentes, com risco de perda permanente de partes dos pântanos. Poluição,
espécies invasivas e exploração de petróleo ameaçam o ecossistema.
Apesar disso, os Ma'dan e ativistas como
Alwash continuam lutando pela preservação, provando que esse "Jardim do
Éden", berço da civilização humana,
ainda pode ser salvo com cooperação internacional e gestão sustentável da água.
Essa história nos lembra como o equilíbrio ambiental é essencial para culturas antigas, e como conflitos e mudanças climáticas podem apagá-las para sempre.









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