O
que eu tenho no pescoço?
Muito
bem. Sua resposta é lógica, coerente com uma pessoa absolutamente normal: uma
gravata!
“Um
louco, porém, diria que eu tenho no pescoço um pano colorido, ridículo, inútil,
amarrado de uma maneira complicada, que termina dificultando os movimentos da
cabeça e exigindo um esforço maior para que o ar possa entrar nos pulmões. Se
eu me distrair quando estiver perto de um ventilador, posso morrer estrangulado
por este pano”.
“Se
um louco me perguntar para que serve uma gravata, eu terei que responder: para
absolutamente nada. Nem mesmo para enfeitar, porque hoje em dia ela tornou-se o
símbolo de escravidão, poder, distanciamento. A única utilidade da gravata
consiste em chegar em casa e retira-la, dando a sensação de que estamos livres
de alguma coisa que nem sabemos o que é”.
“Mas
sensação de alivio justifica a existência da gravata? Não. Mesmo assim, se eu
perguntar para um louco e para uma pessoa normal o que é isso, será considerado
são aquele que responder: uma gravata. Não importa quem está certo – importa
quem tem razão”.
Paulo
Coelho – Do Livro Veronika Decide Morrer
O
texto extraído de Veronika Decide Morrer, de Paulo Coelho, apresenta uma
reflexão provocadora sobre a gravata, um objeto aparentemente trivial que o
autor transforma em símbolo de convenções sociais, absurdos cotidianos e
questionamentos existenciais.
A
narrativa começa com uma pergunta simples – "O que eu tenho no
pescoço?" – e, a partir daí, desdobra-se em duas perspectivas
contrastantes: a da "pessoa normal", que vê a gravata como um
acessório comum e aceitável, e a do "louco", que a descreve como um
"pano colorido, ridículo, inútil", um artefato que não apenas carece
de função prática, mas também impõe desconforto e até risco.
Com
humor e ironia, Paulo Coelho usa essa dualidade para desafiar o leitor a
repensar o que é considerado "sensato" ou "insano" em nossa
sociedade. A crítica do "louco" vai além do objeto em si.
Ele
enxerga a gravata como uma metáfora para a submissão às normas sociais: um
símbolo de "escravidão, poder, distanciamento". Historicamente, a
gravata tem raízes curiosas – sua origem remonta ao século XVII, quando
soldados croatas usavam lenços no pescoço, uma prática que foi adotada pela
aristocracia francesa e, com o tempo, evoluiu para o acessório formal que
conhecemos hoje.
No
entanto, como Coelho aponta, sua utilidade prática é questionável. Não aquece,
não protege, não facilita a vida; pelo contrário, exige um ritual de nós
complicados e, em situações extremas, pode até se tornar um perigo, como no
exemplo exagerado, mas ilustrativo, do ventilador.
A
única "função" que resta, segundo o texto, é o alívio de retirá-la ao
fim do dia – um prazer que, ironicamente, depende da existência do próprio
desconforto.
Essa
ideia ressoa com uma crítica mais ampla às convenções que seguimos sem
questionar. A gravata, nesse sentido, torna-se um emblema do conformismo:
usá-la é sinal de pertencimento a certos círculos – corporativos, políticos,
sociais –, mas também de alienação de si mesmo.
O
texto sugere que o ato de a aceitar como "normal" é menos uma questão
de lógica e mais uma questão de poder: "Não importa quem está certo –
importa quem tem razão".
Aqui,
Coelho toca em um tema recorrente em sua obra: a tensão entre a liberdade
individual e as imposições coletivas, entre a autenticidade e a máscara que
vestimos para sermos aceitos.
Para
ampliar a reflexão, podemos explorar o contexto cultural e histórico da
gravata. No mundo contemporâneo, ela é frequentemente associada a figuras de
autoridade – executivos, advogados, políticos –, mas também carrega um peso de
artificialidade.
Em
algumas culturas, como no Japão, o uniforme corporativo mantém a gravata como
peça obrigatória, enquanto em outras, como em startups do Vale do Silício,
rejeitá-la virou símbolo de inovação e descontração.
Essa
dicotomia reflete o que Coelho insinua: a gravata não é apenas um objeto, mas
um código, uma linguagem silenciosa que comunica status, submissão ou
resistência, dependendo de quem a usa e como.
Outro
ângulo interessante é o psicológico. Por que continuamos a usar algo que, como
o "louco" argumenta, parece tão absurdo? Talvez a resposta esteja na
necessidade humana de rituais e símbolos.
Assim
como um uniforme militar ou uma joia cerimonial, a gravata pode ser vista como
um marcador de identidade, um preço pago para pertencer a um grupo. Mas, como o
texto provoca, esse preço vale a pena?
A
sensação de alívio ao tirá-la sugere que, no fundo, muitos de nós reconhecemos
sua inutilidade – ou, pelo menos, seu caráter opressivo –, mas seguimos o jogo
porque fugir dele exige mais coragem do que obedecer.
Podemos
ainda trazer uma perspectiva prática do século XXI. Com o aumento do trabalho
remoto e a flexibilização dos códigos de vestimenta, a gravata vem perdendo
terreno.
Em
2025, por exemplo, muitas empresas já abandonaram o dress code formal, e o que
antes era um símbolo de poder agora é visto por alguns como um resquício
ultrapassado.
Mesmo
assim, em eventos como casamentos ou tribunais, ela persiste, agarrada à
tradição. Isso reforça a ideia de Coelho: a gravata não precisa fazer sentido
para existir; ela sobrevive porque a sociedade decidiu que ela "tem
razão", mesmo que ninguém saiba exatamente por quê.
No
cerne do texto, há uma provocação filosófica: o que define a sanidade? Se o
"louco" vê o absurdo onde o "normal" vê a ordem, quem está
mais próximo da verdade?
Paulo
Coelho nos convida a rir do ridículo das nossas convenções e, ao mesmo tempo, a
sentir o peso delas. A gravata, esse "pano colorido" tão banal,
torna-se um espelho das nossas escolhas: usamo-la por hábito, por medo ou por
preguiça de questionar.
Talvez
o verdadeiro louco não seja aquele que a rejeita, mas quem a aceita sem nunca
perguntar para quê. Alias, Hugo Mota o atual presidente da Câmara dos Deputados
exige a gravata em todos, ou usa ou não entra no plenário.