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domingo, março 02, 2025

Uma gravata.



        

O que eu tenho no pescoço?

Muito bem. Sua resposta é lógica, coerente com uma pessoa absolutamente normal: uma gravata!

“Um louco, porém, diria que eu tenho no pescoço um pano colorido, ridículo, inútil, amarrado de uma maneira complicada, que termina dificultando os movimentos da cabeça e exigindo um esforço maior para que o ar possa entrar nos pulmões. Se eu me distrair quando estiver perto de um ventilador, posso morrer estrangulado por este pano”.

“Se um louco me perguntar para que serve uma gravata, eu terei que responder: para absolutamente nada. Nem mesmo para enfeitar, porque hoje em dia ela tornou-se o símbolo de escravidão, poder, distanciamento. A única utilidade da gravata consiste em chegar em casa e retira-la, dando a sensação de que estamos livres de alguma coisa que nem sabemos o que é”.

“Mas sensação de alivio justifica a existência da gravata? Não. Mesmo assim, se eu perguntar para um louco e para uma pessoa normal o que é isso, será considerado são aquele que responder: uma gravata. Não importa quem está certo – importa quem tem razão”.

Paulo Coelho – Do Livro Veronika Decide Morrer

O texto extraído de Veronika Decide Morrer, de Paulo Coelho, apresenta uma reflexão provocadora sobre a gravata, um objeto aparentemente trivial que o autor transforma em símbolo de convenções sociais, absurdos cotidianos e questionamentos existenciais.

A narrativa começa com uma pergunta simples – "O que eu tenho no pescoço?" – e, a partir daí, desdobra-se em duas perspectivas contrastantes: a da "pessoa normal", que vê a gravata como um acessório comum e aceitável, e a do "louco", que a descreve como um "pano colorido, ridículo, inútil", um artefato que não apenas carece de função prática, mas também impõe desconforto e até risco.

Com humor e ironia, Paulo Coelho usa essa dualidade para desafiar o leitor a repensar o que é considerado "sensato" ou "insano" em nossa sociedade. A crítica do "louco" vai além do objeto em si.

Ele enxerga a gravata como uma metáfora para a submissão às normas sociais: um símbolo de "escravidão, poder, distanciamento". Historicamente, a gravata tem raízes curiosas – sua origem remonta ao século XVII, quando soldados croatas usavam lenços no pescoço, uma prática que foi adotada pela aristocracia francesa e, com o tempo, evoluiu para o acessório formal que conhecemos hoje.

No entanto, como Coelho aponta, sua utilidade prática é questionável. Não aquece, não protege, não facilita a vida; pelo contrário, exige um ritual de nós complicados e, em situações extremas, pode até se tornar um perigo, como no exemplo exagerado, mas ilustrativo, do ventilador.

A única "função" que resta, segundo o texto, é o alívio de retirá-la ao fim do dia – um prazer que, ironicamente, depende da existência do próprio desconforto.

Essa ideia ressoa com uma crítica mais ampla às convenções que seguimos sem questionar. A gravata, nesse sentido, torna-se um emblema do conformismo: usá-la é sinal de pertencimento a certos círculos – corporativos, políticos, sociais –, mas também de alienação de si mesmo.

O texto sugere que o ato de a aceitar como "normal" é menos uma questão de lógica e mais uma questão de poder: "Não importa quem está certo – importa quem tem razão".

Aqui, Coelho toca em um tema recorrente em sua obra: a tensão entre a liberdade individual e as imposições coletivas, entre a autenticidade e a máscara que vestimos para sermos aceitos.

Para ampliar a reflexão, podemos explorar o contexto cultural e histórico da gravata. No mundo contemporâneo, ela é frequentemente associada a figuras de autoridade – executivos, advogados, políticos –, mas também carrega um peso de artificialidade.

Em algumas culturas, como no Japão, o uniforme corporativo mantém a gravata como peça obrigatória, enquanto em outras, como em startups do Vale do Silício, rejeitá-la virou símbolo de inovação e descontração.

Essa dicotomia reflete o que Coelho insinua: a gravata não é apenas um objeto, mas um código, uma linguagem silenciosa que comunica status, submissão ou resistência, dependendo de quem a usa e como.

Outro ângulo interessante é o psicológico. Por que continuamos a usar algo que, como o "louco" argumenta, parece tão absurdo? Talvez a resposta esteja na necessidade humana de rituais e símbolos.

Assim como um uniforme militar ou uma joia cerimonial, a gravata pode ser vista como um marcador de identidade, um preço pago para pertencer a um grupo. Mas, como o texto provoca, esse preço vale a pena?

A sensação de alívio ao tirá-la sugere que, no fundo, muitos de nós reconhecemos sua inutilidade – ou, pelo menos, seu caráter opressivo –, mas seguimos o jogo porque fugir dele exige mais coragem do que obedecer.

Podemos ainda trazer uma perspectiva prática do século XXI. Com o aumento do trabalho remoto e a flexibilização dos códigos de vestimenta, a gravata vem perdendo terreno.

Em 2025, por exemplo, muitas empresas já abandonaram o dress code formal, e o que antes era um símbolo de poder agora é visto por alguns como um resquício ultrapassado.

Mesmo assim, em eventos como casamentos ou tribunais, ela persiste, agarrada à tradição. Isso reforça a ideia de Coelho: a gravata não precisa fazer sentido para existir; ela sobrevive porque a sociedade decidiu que ela "tem razão", mesmo que ninguém saiba exatamente por quê.

No cerne do texto, há uma provocação filosófica: o que define a sanidade? Se o "louco" vê o absurdo onde o "normal" vê a ordem, quem está mais próximo da verdade?

Paulo Coelho nos convida a rir do ridículo das nossas convenções e, ao mesmo tempo, a sentir o peso delas. A gravata, esse "pano colorido" tão banal, torna-se um espelho das nossas escolhas: usamo-la por hábito, por medo ou por preguiça de questionar.

Talvez o verdadeiro louco não seja aquele que a rejeita, mas quem a aceita sem nunca perguntar para quê. Alias, Hugo Mota o atual presidente da Câmara dos Deputados exige a gravata em todos, ou usa ou não entra no plenário.

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