Irmãos Coragem: Uma Saga Inesquecível da TV Brasileira
No dia
29 de junho de 1970, a TV Globo exibiu o primeiro dos 328 capítulos da
telenovela Irmãos Coragem, marcando o início de uma das produções mais icônicas
da teledramaturgia nacional.
Eu era
ainda muito jovem e morava na cidade de Itaitinga, no Ceará. Televisão em casas
particulares era algo raro e luxuoso nos anos 1970, especialmente no interior
do Brasil. No entanto, na pracinha central da cidade, havia uma televisão
pública em preto e branco que atraía quase toda a população no horário nobre.
Famílias
inteiras se reuniam ali, sentadas em bancos improvisados ou no chão, para
acompanhar o desenrolar da trama. Era um evento social: conversas animadas
antes do capítulo, suspiros coletivos durante as cenas de tensão e aplausos ao
final.
Essa TV
comunitária simbolizava o poder unificador da novela, que alcançava audiências
estratosféricas - estima-se que Irmãos Coragem tenha batido recordes de ibope,
com picos acima de 70% das TVs ligadas no país, superando até eventos
esportivos da época.
A
autoria ficou a cargo da lendária Janete Clair, uma das maiores novelistas
brasileiras, responsável por sucessos como Selva de Pedra e Pecado Capital. A
direção foi compartilhada por Daniel Filho, Milton Gonçalves e Reynaldo Boury,
com Daniel Filho assumindo a direção geral.
Essa
equipe trouxe um ritmo dinâmico e realista à produção, misturando drama social,
romance e crítica política em plena ditadura militar (1964-1985), o que
adicionava camadas de ousadia à narrativa.
O
elenco reunia o que de melhor a Globo tinha na época, com nomes que se tornariam
eternos na TV: Tarcísio Meira (no papel de João Coragem), Glória Menezes
(Lara/Diana/Márcia), Cláudio Cavalcanti (Jerônimo Coragem), Cláudio Marzo
(Eduardo "Duda" Coragem), Regina Duarte (Ritinha), Emiliano Queiroz (Juca
Cipó), Carlos Eduardo Dolabella (Rodrigo César), Lúcia Alves (Potira).
E mais,
José Augusto Branco, Gilberto Martinho, Zilka Salaberry, Myriam Pérsia, Sônia
Braga (em um de seus primeiros papéis de destaque, como a sedutora Lúcia), Ênio
Santos e muitos outros. Infelizmente, boa parte desse elenco já nos deixou,
como Tarcísio Meira (falecido em 2021), Glória Menezes (ainda ativa, mas com
saúde fragilizada), Cláudio Marzo (morto em 2015) e Gilberto Martinho (em
1986).
A
química entre eles era palpável, elevando a novela a um patamar de excelência.
Sinopse Expandida: Uma Trama de Coragem, Injustiça e Amores Proibidos
Ambientada
na fictícia cidade de Coroado, no cerrado goiano - uma região árida e isolada
que representava o Brasil profundo dos anos 1970 -, a história gira em torno da
saga dos três irmãos Coragem: o rude e generoso João (o protagonista central),
o ambicioso Jerônimo e o sonhador Eduardo, apelidado de Duda.
Eles
trabalham honestamente no garimpo de diamantes, uma atividade perigosa e
exploradora na época real, inspirada nos garimpos de Goiás e Minas Gerais.
Tudo
muda quando João, um homem simples que sempre prioriza o diálogo e a ética,
encontra um valioso diamante rosa - o maior já descoberto na trama, avaliado em
milhões.
Logo em
seguida, a pedra é roubada pelos capangas do Coronel Pedro Barros, o
todo-poderoso da região: ele controla o comércio de garimpo, a política local e
até a justiça, personificando os "coronéis" do Brasil interiorano,
com ecos da oligarquia rural que ainda vigorava sob a ditadura.
Injustiçado
repetidas vezes - preso, espancado e humilhado -, João se transforma em fora da
lei. Ele forma um bando com outros garimpeiros explorados, adotando táticas de
guerrilha para combater o sistema opressor.
Essa
virada reflete temas sociais profundos: a luta contra a desigualdade, a
corrupção e a violência institucional, com paralelos sutis à resistência armada
da época (como a Guerrilha do Araguaia, que ocorria simultaneamente, entre
1972-1974, embora a novela evite menções diretas para não censurar).
No
entanto, o destino complica tudo: João se apaixona pela filha do coronel, a
frágil e tímida Lara (Glória Menezes em um tour de force). Ela sofre de uma
misteriosa doença - revelada como transtorno dissociativo de identidade, à
frente de seu tempo em representações psiquiátricas na TV.
Lara
alterna entre três personalidades: a doce e recatada Lara; a selvagem e
passional Diana (que seduz João em cenas ousadas para a época); e a equilibrada
Márcia, um contraponto racional.
Essa
trama psicológica perturba imensamente João, criando um triângulo amoroso
interno que explora temas de identidade, loucura e redenção.
Paralelamente,
a indígena Potira (Lúcia Alves), adotada pela família Coragem, é o centro de
outro drama. Jerônimo (Cláudio Cavalcanti) nutre uma paixão proibida por ela,
vista como incestuosa pela sociedade conservadora.
Para
esquecer Jerônimo, Potira casa-se com Rodrigo César (Carlos Eduardo Dolabella),
um aliado de João na luta contra o coronel. Jerônimo, por sua vez, entra na
política por um partido de esquerda - uma crítica velada ao bipartidarismo da
ditadura (MDB vs. Arena) -, candidatando-se para combater os abusos do coronel.
Para
fugir de seus sentimentos, ele se casa com Lídia Siqueira, filha do deputado
Dr. Siqueira, mergulhando em intrigas eleitorais cheias de subornos e alianças
falsas. O caçula, Duda (Cláudio Marzo), rejeita o garimpo e realiza o sonho de
virar jogador profissional do Flamengo - um aceno ao futebol como escape social
no Brasil.
Ele
deixa Coroado, a família e o amor de infância, a recatada Ritinha (Regina
Duarte). Ao retornar famoso, Duda está envolvido com a ambiciosa Paula, que faz
de tudo para mantê-lo.
Ritinha,
lutando pelo seu amor, passa uma noite inocente com ele em um quarto. Nada
acontece, mas o pai dela, o rígido Dr. Maciel (que despreza Duda por sua origem
humilde), obriga o casamento para preservar a honra da filha.
A
cidade, com sua moral hipócrita, não perdoaria o "escândalo" - uma
crítica à sociedade patriarcal e ao machismo rural.
Acontecimentos Adicionais e Impacto Cultural
Irmãos
Coragem não foi só entretenimento: foi um fenômeno cultural que influenciou o
debate público. Lançada em meio à censura do regime militar, a novela usou
metáforas para criticar a ditadura - o coronel como ditador local, os garimpeiros
como oprimidos.
Janete
Clair inseriu elementos progressistas, como a luta de classes e o empoderamento
feminino (Potira como indígena forte). O diamante rosa inspirou buscas reais
por pedras preciosas em Goiás, impulsionando o turismo garimpeiro.
Curiosidades:
Sônia Braga, então com 20 anos, explodiu em popularidade como Lúcia, abrindo
portas para sua carreira internacional. A trilha sonora, com músicas como
"Coragem" (de Nonato Buzar) e temas de Roberto Carlos, vendeu
milhões.
A
novela foi remakada em 1995, mas a original permanece insuperável. No dia 15 de
julho de 1971, assistimos ao último capítulo. O final emocionante - com
redenção, casamentos e justiça poética - deixou a pracinha de Itaitinga em
lágrimas. Muitos choravam não só pelo fim da trama, mas pela sensação de perda
de uma "família" semanal.
Irmãos
Coragem uniu o Brasil, provando o poder da TV em transformar realidades. Até
hoje, evoca nostalgia de uma era em que novelas eram eventos nacionais.









0 Comentários:
Postar um comentário