Padre Cícero: O Legado Vivo de Juazeiro do Norte
Cícero
Romão Batista, conhecido popularmente como Padre Cícero ou "Padim
Ciço", é uma figura central na história, na cultura e na economia de
Juazeiro do Norte, cidade que ajudou a fundar e transformar em um dos maiores
centros de religiosidade popular do Brasil.
Passados
91 anos de sua morte, em 20 de julho de 1934, seu carisma e influência
continuam a atrair milhões de romeiros de todo o país, especialmente do
Nordeste, impulsionando a economia local por meio das romarias, que ocorrem
diversas vezes ao longo do ano.
Esses
eventos religiosos não apenas perpetuam a devoção ao "santo do povo",
mas também consolidam Juazeiro como um polo econômico e cultural singular.
O Fenômeno das Romarias e a Economia Local
As
romarias em homenagem a Padre Cícero são o principal motor econômico de
Juazeiro do Norte. Milhares de peregrinos visitam a cidade anualmente,
especialmente durante as celebrações de Nossa Senhora das Dores (15 de
setembro), Dia de Finados (2 de novembro) e a Romaria da Esperança (20 de
julho, data de sua morte).
Esses
eventos movimentam o comércio local, que oferece uma vasta gama de produtos
religiosos, como imagens de santos, terços, velas, chapéus de palha, fogos de
artifício e souvenirs variados.
A produção
artesanal e industrial de imagens sacras, especialmente de Padre Cícero, é um
dos pilares da economia, com um polo industrial dedicado à fabricação desses
itens, além de bijuterias e outros objetos devocionais.
A
atmosfera vibrante das romarias é tão marcante que até os animais da cidade
parecem adaptados ao fervor religioso. Como testemunhado por quem já viveu em
Juazeiro, é comum ver cachorros que, acostumados aos fogos de artifício
disparados pelos romeiros, permanecem calmos, observando o céu enquanto os
rojões explodem.
Essa
peculiaridade reflete o caráter único da cidade, onde a fé e a cultura se
entrelaçam de maneira indissociável.
A Trajetória de Padre Cícero
Nascido
em 24 de março de 1844, no Crato, cidade vizinha a Juazeiro, Cícero Romão Batista
demonstrou desde cedo uma forte inclinação espiritual. Aos 12 anos, inspirado
pela leitura da vida de São Francisco de Sales, fez um voto de castidade.
Apesar
de seu desempenho acadêmico modesto no seminário, especialmente em disciplinas
como oratória e eloquência, sua ordenação sacerdotal ocorreu em 30 de novembro
de 1870.
Após
retornar ao Crato, enquanto aguardava a designação de uma paróquia, lecionou
latim no Colégio Padre Ibiapina, fundado por seu amigo e mentor, o professor
José Joaquim Teles Marrocos.
Padre
Cícero era uma figura multifacetada: além de líder religioso, foi proprietário
de terras, gado e imóveis, e desempenhou papéis significativos na política e na
sociedade conservadora do sertão do Cariri.
Seu
braço direito, o médico Floro Bartolomeu, foi um importante aliado no sistema
político cearense, consolidando a influência de Padre Cícero na região.
O Milagre de 1889 e a Controvérsia com a Igreja
O
evento que marcou a trajetória de Padre Cícero e o transformou em ícone
religioso foi o alegado milagre de 1º de março de 1889. Durante uma missa
celebrada por ele, a hóstia ministrada à beata Maria de Araújo transformou-se
em sangue em sua boca, fenômeno que se repetiu em outras ocasiões.
Inicialmente,
uma comissão eclesiástica, em 13 de outubro de 1891, reconheceu o evento como
milagre. No entanto, insatisfeito com o parecer, o bispo Dom Joaquim José
Vieira nomeou uma segunda comissão, que concluiu que se tratava de um embuste.
Como
consequência, Padre Cícero teve suas ordens sacerdotais suspensas, e Maria de
Araújo foi enclausurada, vindo a falecer em 1914. Em 1898, Padre Cícero viajou
a Roma para se reunir com o Papa Leão XIII e membros da Congregação do Santo
Ofício, conseguindo inicialmente sua absolvição.
Contudo,
ao retornar a Juazeiro, a decisão foi revista, e ele enfrentou restrições
impostas pela Igreja. Apesar de rumores de excomunhão, estudos conduzidos
décadas depois pelo bispo Dom Fernando Pânico indicam que tal punição não foi
formalmente aplicada.
Em
2001, o então cardeal Joseph Ratzinger (futuro Papa Bento XVI) encomendou
análises para avaliar a possibilidade de reabilitação de Padre Cícero. Em 31 de
maio de 2006, Dom Fernando Pânico liderou uma comitiva que enviou ao Vaticano a
documentação necessária para iniciar o processo de reabilitação, que culminou
no perdão oficial da Igreja Católica em 13 de dezembro de 2015.
Influência Política e o Pacto dos Coronéis
Padre
Cícero também deixou um legado político significativo. Filiado ao Partido
Republicano Conservador (PRC), foi o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte, em
1911, quando o povoado foi elevado à categoria de cidade.
Em
1926, foi eleito deputado federal, mas não assumiu o cargo. Sua influência
política foi reforçada pelo chamado Pacto dos Coronéis, firmado em 4 de outubro
de 1911, quando Padre Cícero e outros líderes regionais se reuniram para apoiar
o governador Antônio Pinto Nogueira Accioli, consolidando sua posição no
contexto do coronelismo brasileiro.
Em
1913, foi destituído do cargo de prefeito pelo governador Marcos Franco Rabelo,
mas retornou ao poder em 1914, após a Sedição de Juazeiro, um movimento que
depôs Rabelo e marcou a história política do Ceará.
Padre
Cícero também foi eleito vice-governador do estado no governo de Benjamin
Liberato Barroso. No entanto, sua influência política começou a declinar no
final da década de 1920, especialmente após a Revolução de 1930, embora sua
aura de "santo milagreiro" continuasse a crescer.
Padre Cícero e o Cangaço
A
relação de Padre Cícero com o cangaço é outro aspecto marcante de sua história.
Virgulino Ferreira da Silva, o lendário Lampião, era devoto do padre e o
respeitava profundamente.
Em
1926, os dois se encontraram em Juazeiro do Norte, em um episódio cercado de
controvérsias. Segundo uma versão, defendida pelo historiador Billy Jaynes
Chandler, Padre Cícero teria convocado Lampião para integrar o Batalhão
Patriótico de Juazeiro, criado para combater a Coluna Prestes, prometendo
anistia e a patente de capitão.
Outra
versão, sustentada por Lira Neto e Anildomá Willians, sugere que o convite foi
feito por Floro Bartolomeu sem o conhecimento de Padre Cícero. No encontro,
Padre Cícero aconselhou Lampião e seus 49 cangaceiros a abandonarem o cangaço.
Apesar
da exigência de Lampião por uma patente, um documento assinado por Pedro de
Albuquerque Uchoa, funcionário público federal, concedeu-lhe o título de
capitão e anistia. Contudo, o bando deixou Juazeiro sem enfrentar a Coluna
Prestes, e a promessa de anistia não se concretizou.
Exploração Mineral e o Legado Econômico
Além de
sua atuação religiosa e política, Padre Cícero esteve envolvido em iniciativas
econômicas, como a exploração de xisto betuminoso em terras de sua propriedade
no Crato, na localidade de Taboca.
Em
1901, o Conde von de Brule, em missão da Secretaria do Interior do Ceará,
visitou a área, identificando o potencial econômico do recurso. Em 1919, o
governador João Tomé de Saboia e Silva ordenou a construção da Mina Santa Rosa,
mas as obras foram interrompidas devido ao calor excessivo e à falta de
ventilação.
Em
1921, a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas financiou uma perfuração,
e, em 1922, o geólogo Sylvio Froes Abreu confirmou o potencial do xisto para a
produção de óleos lubrificantes e combustíveis. Hoje, essa camada petrolífera é
conhecida como Membro Fundão, um marco na geologia do Cariri.
Reconhecimento e Legado
O
impacto de Padre Cícero transcende sua época. Em março de 2001, a TV Verdes
Mares, afiliada da Rede Globo no Ceará, elegeu-o o "Cearense do
Século" por votação popular.
Em
julho de 2012, foi escolhido um dos "100 Maiores Brasileiros de Todos os
Tempos" em uma eleição promovida pelo SBT em parceria com a BBC. Sua
influência cultural e religiosa permanece viva, com a cidade de Juazeiro do
Norte sendo um testemunho de seu legado.
Padre
Cícero faleceu em 20 de julho de 1934, aos 90 anos, e está sepultado na Igreja
de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Juazeiro do Norte. Sua vida, marcada
por uma combinação de fé, política e carisma, continua a inspirar gerações, e
as romarias em sua homenagem reforçam a identidade de Juazeiro como um dos
maiores centros de peregrinação do Brasil.
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