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quarta-feira, julho 02, 2025

Refúgios Invisíveis


 

Não sei ao certo em que momento o silêncio tomou conta de nós. Talvez tenha sido em alguma manhã comum, enquanto o café esfriava na mesa e os olhos se desviavam, buscando refúgios invisíveis.

O amor, que antes pulsava nos gestos pequenos, agora parecia um eco distante de algo que fomos - ou sonhamos ser.

Ela - a pessoa que compartilhou comigo tantas estações - mudou. Ou talvez tenha sido eu quem mudou primeiro, esperando constância onde só havia movimento. Passávamos um pelo outro como se habitássemos cidades distintas, ainda que sob o mesmo teto.

Havia uma frieza, sim. Mas não aquela dos vilões das histórias. Era a frieza de quem tenta sobreviver à afetos que já não aquecem, de quem endurece os gestos para não ferir mais - nem se deixar ferir. E eu, no meu orgulho e apego, confundi isso com abandono.

No início, tentei entender. Cada silêncio, cada palavra não dita, parecia esconder significados que eu me esforçava para decifrar. Perguntei-me se havia feito algo errado, se havia falhado em ser abrigo, presença, ternura.

Mas percebi que a vida é feita também de distâncias involuntárias, e nem sempre o que se rompe tem culpados.

Ela não me devia constância. Ninguém deve. O que antes foi afeto sincero, talvez tenha apenas seguido seu curso natural - como um rio que muda a rota com o tempo, sem violência, apenas porque é da natureza da água buscar outros caminhos.

Ainda assim, doía. Doía à ausência nos olhos dela, a falta de resposta nos toques, a maneira como as palavras dela, antes cheias de música, tornaram-se pausadas, econômicas. Era como se ela estivesse partindo aos poucos, em silêncio - e eu ficava para trás, tentando segurar o que já não me cabia.

Houve noites em que me peguei olhando para o teto, buscando respostas nas sombras. Perguntava-me se o amor tinha prazo, se a ternura poderia morrer de cansaço. E me assustava a possibilidade de que sim - de que o que nos une possa, um dia, simplesmente cessar.

Não à odiei. Nem poderia. O que senti foi algo mais confuso: um misto de tristeza e admiração, uma espécie de luto por tudo que fomos. Havia força nela, uma firmeza que eu não compreendia, e que às vezes me feria - não por maldade, mas porque me lembrava da minha própria fragilidade.

Aos poucos, fui compreendendo que o amor não é posse. Que insistir em prender alguém que já partiu por dentro é também uma forma de violência. E que, se há algo de digno na dor, é aprender a deixá-la seguir.

Naquela manhã, quando ela enfim partiu - levando apenas o essencial e deixando um perfume leve no ar - eu não disse nada. Observei a porta se fechar com suavidade, como se ela soubesse que já havia se despedido muito antes, em gestos imperceptíveis.

Sentei-me no sofá vazio. O silêncio era agora completo, mas, estranhamente, já não parecia hostil. Era o silêncio de algo que se conclui, que chega ao fim sem alarde. E eu, pela primeira vez, não lutei contra ele.

Não há heroísmo no sofrimento. Há, talvez, aprendizado. Ela foi uma presença marcante, e disso não duvido. Trouxe luz, trouxe sombra - e, sobretudo, espelhos. Através dela, vi o melhor e o pior de mim mesmo. E por isso, apesar da dor, sou grato.

Agora, sigo. Com as cicatrizes que me lembram do que vivi, mas também com a leveza de quem aprendeu que amar não é reter. É permitir. Permitir que o outro exista, mude, parta - e que, mesmo assim, algo de verdadeiro permaneça em nós.

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