A Origem da Infelicidade Humana - Enquanto não possuía nada além da minha cama e dos meus livros, eu estava feliz. Agora eu possuo nove galinhas e um galo, e minha alma está perturbada. A propriedade me tornou cruel.
Sempre que comprava uma galinha
amarrava-a dois dias a uma árvore. Remendei a cerca do meu quintal, a fim de
evitar a evasão dos meus pássaros, e a invasão de raposas de quatro e dois pés.
Eu me isolei, fortifiquei a fronteira, tracei uma linha diabólica entre mim e meu vizinho. Dividi a humanidade em duas categorias; eu, dono das minhas galinhas, e os outros que podiam tirá-las de mim.
Eu defini o crime. O mundo
encheu-se para mim de alegados ladrões, e pela primeira vez eu lancei do outro
lado da cerca um olhar hostil.
Meu galo era muito jovem. O galo
do vizinho pulou a cerca e começou a corte das minhas galinhas e a amargar a
existência do meu galo. Despedi o intruso a pedrada, mas eles pularam a cerca e
depositaram seus ovos na casa do vizinho.
Eu reclamei os ovos e meu vizinho
me odeia. Desde então vi a cara dele na cerca, o seu olhar inquisidor e hostil,
idêntico ao meu.
Suas galinhas passavam a cerca, e
devoravam o milho molhado que consagrava aos meus. As galinhas dos outros me
pareciam criminosas.
Persegui-as e cego pela raiva
matei uma. O vizinho atribuiu grande importância ao atentado.
Ele não aceitou uma indenização
pecuniária. Retirou gravemente o corpo do seu frango, e em vez de comê-lo,
mostrou-o aos seus amigos, o que começou a circular pela aldeia a lenda da
minha brutalidade imperialista.
Tive que reforçar a cerca,
aumentar a vigilância, aumentar, em suma, meu orçamento de guerra. O vizinho
tem um cão determinado a tudo; eu pretendo comprar uma arma.
Onde está minha antiga
tranquilidade? Estou envenenado pela desconfiança e pelo ódio. O espírito do
mal tomou conta de mim.
Eu era um homem. Agora eu sou um dono."
("Galinhas", do anarquista
Rafael Barrett, Paraguai, 1910.) Um relato exemplar para discutir as célebres
frases de Rousseau ou Hobbes.
Jean Jacques Rousseau, “O
primeiro homem que, havendo cercado um pedaço de terra, disse “ISSO É MEU”, e
encontrou pessoas tolas o suficiente para acreditar nas suas palavras, este
homem foi o verdadeiro fundador da sociedade civil", em Do Contrato Social
(1762).
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