Eu sou
muitos. Há multidões em mim. Na mesa da minha alma, sentam-se inúmeros, e eu
sou todos eles. Há um velho encurvado pela sabedoria do tempo, uma criança que
ainda se maravilha com o brilho do mundo, um sábio que contempla o infinito e
um tolo que tropeça nas próprias ilusões.
Há
guerreiros cansados, poetas que sangram em silêncio, rebeldes que desafiam o
céu e peregrinos que buscam um lar que nunca encontram. Você nunca saberá com
quem está sentado, nem por quanto tempo cada um de mim permanecerá à sua
frente.
Sou um
mosaico em constante mutação, um caleidoscópio de vozes que se entrelaçam e se
contradizem. Mas prometo, com a sinceridade de quem carrega o peso de ser
muitos, que, se nos sentarmos à mesa - nesse ritual sagrado da convivência -,
eu lhe entregarei ao menos um desses eus, com toda a sua verdade, ainda que
fugaz.
E,
nesse encontro, correrei os riscos de nos vermos refletidos, de estarmos juntos
no mesmo plano, vulneráveis à luz crua da existência. Não se iluda, porém:
também carrego sombras.
Há em
mim um lado sombrio, um demônio que tento manter acorrentado, mas que, por
vezes, escapa e me envergonha. Ele é o grito que não controlo, a raiva que
queima sem motivo, o vazio que sussurra nas noites mais longas.
Não sou
santo, nem exemplo, e talvez nunca serei. Sou humano, demasiadamente humano, e
essa é minha glória e minha ruína. Entre tantos que sou, busco-me
incessantemente.
Cada
dia é uma batalha para reunir esses fragmentos, para encontrar o fio que
costura o velho, a criança, o sábio e o tolo em um só ser. Como já foi dito, em
ecos que atravessam séculos: ouse conquistar a ti mesmo.
Mas
essa conquista não é um fim, é um eterno começar. É o enfrentamento diário das
multidões que me habitam, das vozes que clamam por sentido, das feridas que o
tempo não apaga e das esperanças que o mesmo tempo reacende.
E assim
sigo, carregando essas multidões, essas almas que dançam e colidem dentro de
mim. Cada acontecimento da vida - a alegria que explode, a dor que corta, o
amor que eleva, a perda que despedaça - molda essa assembleia interior.
Recentemente,
vi-me diante de um espelho partido: a morte de alguém querido trouxe o velho à
tona, com sua melancolia sábia, enquanto a criança chorava a ausência.
O sábio
tentou explicar o inexplicável, e o tolo quis fugir. Todos eles, em sua
desordem, me ensinaram que ser muitos é também ser incompleto, mas é essa
incompletude que me faz seguir, que me faz ousar.
Um dia,
talvez, eu me descubra. Um dia, serei eu mesmo, definitivamente - ou, quem
sabe, aprenderei a amar a multidão que sou, sem exigir um fim para o caos.
Até lá,
convido você a sentar-se à minha mesa, a ouvir as vozes que ecoam em mim e a
compartilhar as suas. Pois, no fim, somos todos muitos, e é na partilha dessas
multidões que encontramos o que nos faz humanos.
Inspirado
em Friedrich Nietzsche









0 Comentários:
Postar um comentário