Edgardo
Mortara Levi: O Caso que Abalou a Europa do Século XIX
Edgardo
Mortara Levi nasceu em 27 de agosto de 1851, em Bolonha, então parte dos
Estados Papais, na Itália. Filho de uma família judia, ele se tornou o
protagonista de uma das controvérsias mais notórias do século XIX, conhecida
como o "Caso Mortara".
O
episódio envolveu seu sequestro pelas autoridades dos Estados Papais, sua
adoção pelo Papa Pio IX e sua criação como católico, gerando um escândalo
internacional que reverberou por décadas e continua a suscitar debates.
Infância
e o Sequestro
Edgardo
viveu seus primeiros seis anos como judeu, criado por seus pais, Salomone
(Momolo) e Marianna Mortara, em uma família de classe média. Em 1858, a vida da
família mudou drasticamente quando autoridades dos Estados Papais invadiram sua
casa e levaram Edgardo à força.
A
justificativa para o sequestro foi que o menino havia sido batizado em segredo,
aos dois anos de idade, por Anna Morisi, uma empregada doméstica católica da
família.
Segundo
Morisi, o batismo ocorreu durante uma grave doença de Edgardo, quando ela temeu
pela morte do menino. Nos Estados Papais, uma lei canônica proibia que crianças
batizadas como católicas fossem criadas por pais não católicos, mesmo que o
batismo tivesse ocorrido sem o consentimento dos pais.
O
batismo, cuja veracidade nunca foi plenamente comprovada, foi suficiente para
que a Igreja Católica reivindicasse a guarda de Edgardo. Ele foi levado para
Roma e internado na Casa dei Catecumeni, uma instituição destinada à conversão
de judeus e outros não católicos.
Lá, foi
educado como católico sob a tutela pessoal do Papa Pio IX, que desenvolveu um
apego especial pelo menino, tratando-o como um filho adotivo.
A Luta
dos Pais e a Reação Internacional
Os pais
de Edgardo, desesperados, iniciaram uma campanha incansável para recuperar o
filho. Durante doze anos, Momolo e Marianna Mortara apelaram às autoridades
eclesiásticas, buscaram apoio de líderes judeus e mobilizaram a opinião pública
internacional.
No
entanto, suas tentativas foram sistematicamente frustradas pelo Papa Pio IX,
que se recusou a devolver Edgardo, argumentando que a salvação da alma do
menino era mais importante que os laços familiares.
O caso
Mortara chocou a Europa e os Estados Unidos, polarizando opiniões e expondo
tensões religiosas e políticas. Liberais e movimentos judaicos denunciaram o
sequestro como uma violação dos direitos humanos e um exemplo do autoritarismo
dos Estados Papais.
Jornais
de todo o mundo cobriram o caso, e figuras proeminentes, como o imperador
francês Napoleão III e o governo britânico, pressionaram o Vaticano a devolver
Edgardo, sem sucesso.
Por
outro lado, setores conservadores católicos defenderam a ação da Igreja,
alegando que o batismo tornava Edgardo um cristão, cuja educação deveria ser
garantida pela Igreja.
O
Contexto do Risorgimento
O Caso
Mortara ocorreu em um momento crítico da história italiana: o Risorgimento,
movimento pela unificação da Itália, que buscava criar um Estado nacional
secular e reduzir o poder temporal da Igreja Católica.
Os
Estados Papais, governados diretamente pelo Papa, eram vistos como um obstáculo
à unificação, e o sequestro de Edgardo intensificou as críticas ao governo
teocrático de Pio IX.
O caso
foi explorado por líderes do Risorgimento, como Camillo Cavour, para destacar a
necessidade de separar Igreja e Estado.
Apesar
de sua relevância, o Caso Mortara é frequentemente negligenciado nas narrativas
tradicionais do Risorgimento, que tendem a focar em eventos militares e
políticos, como as guerras de independência.
Historiadores
modernos, no entanto, reconhecem que o episódio simbolizou as tensões entre
modernidade e tradição, além de expor as complexas relações entre católicos e
judeus na Europa do século XIX.
A Vida
de Edgardo como Católico
Aos 17
anos, já adolescente, Edgardo teve a oportunidade de retornar à sua família,
mas a reunificação foi breve. Após um mês com os pais, ele decidiu voltar a
Roma, alegando conflitos decorrentes de sua fé católica, que havia abraçado
plenamente.
A
educação recebida na Casa dei Catecumeni e a influência de Pio IX moldaram
profundamente sua identidade religiosa. Em 1873, Edgardo ingressou na Ordem dos
Cônegos Regulares de Latrão e foi ordenado sacerdote, adotando o nome de Pio
Maria Mortara, em homenagem ao Papa que o criara.
Como
sacerdote, Edgardo dedicou sua vida à pregação e à conversão de judeus ao
catolicismo, viajando por diversos países da Europa. Ele expressou publicamente
seu apoio à beatificação de Pio IX, um desejo que se concretizou em 2000, mas
que reacendeu críticas ao Papa devido ao Caso Mortara.
Impacto
e Legado
O Caso
Mortara teve consequências duradouras. Na Itália, ele contribuiu para o
declínio do poder temporal da Igreja Católica, culminando na captura de Roma
pelas forças italianas em 1870, que marcou o fim dos Estados Papais.
Internacionalmente, o caso alimentou debates sobre liberdade religiosa,
direitos parentais e o papel das instituições religiosas na sociedade.
O
episódio também gerou um impacto significativo nas comunidades judaicas, que
passaram a temer conversões forçadas e a perda de seus filhos. Nos Estados
Unidos, o caso mobilizou a nascente comunidade judaica, que organizou protestos
e petições, conforme documentado pelo rabino Bertram Korn em seu estudo The
Mortara Case: 1858-1859 (1957), o primeiro trabalho acadêmico dedicado ao tema.
Korn,
no entanto, foi criticado por imprecisões factuais, como apontou o historiador
David I. Kertzer, autor de The Kidnapping of Edgardo Mortara (1997), uma
análise detalhada que trouxe nova atenção ao caso.
Na
cultura popular, o Caso Mortara inspirou obras como a peça Edgardo Mine, de
Alfred Uhry, e um filme planejado por Steven Spielberg, embora o projeto tenha
sido abandonado.
Recentemente,
a beatificação de Pio IX em 2000 reacendeu o interesse pelo caso, com críticos
argumentando que o papel do Papa no sequestro de Edgardo compromete sua
santidade.
Morte e
Reflexões Finais
Edgardo
Mortara faleceu em 11 de março de 1940, em Liège, na Bélgica, aos 88 anos. Sua
vida reflete as complexidades de um período marcado por conflitos religiosos e
políticos.
O Caso
Mortara permanece um símbolo das tensões entre fé, liberdade individual e poder
institucional, desafiando-nos a refletir sobre os limites da autoridade
religiosa e os direitos das famílias.
Embora
pouco mencionado em algumas histórias do Risorgimento, o caso continua a ser
estudado por historiadores e debatedores éticos, servindo como um lembrete das
consequências de ações justificadas por crenças religiosas em detrimento dos
direitos humanos.
A
trajetória de Edgardo Mortara, de menino judeu a sacerdote católico, é uma
narrativa trágica e fascinante, que ilumina as dinâmicas de poder e identidade
em um mundo em transformação.