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terça-feira, julho 30, 2024

Edgardo Mortara - Adotado pelo Papa Pio IX


Edgardo Mortara Levi: O Caso que Abalou a Europa do Século XIX

Edgardo Mortara Levi nasceu em 27 de agosto de 1851, em Bolonha, então parte dos Estados Papais, na Itália. Filho de uma família judia, ele se tornou o protagonista de uma das controvérsias mais notórias do século XIX, conhecida como o "Caso Mortara".

O episódio envolveu seu sequestro pelas autoridades dos Estados Papais, sua adoção pelo Papa Pio IX e sua criação como católico, gerando um escândalo internacional que reverberou por décadas e continua a suscitar debates.

Infância e o Sequestro

Edgardo viveu seus primeiros seis anos como judeu, criado por seus pais, Salomone (Momolo) e Marianna Mortara, em uma família de classe média. Em 1858, a vida da família mudou drasticamente quando autoridades dos Estados Papais invadiram sua casa e levaram Edgardo à força.

A justificativa para o sequestro foi que o menino havia sido batizado em segredo, aos dois anos de idade, por Anna Morisi, uma empregada doméstica católica da família.

Segundo Morisi, o batismo ocorreu durante uma grave doença de Edgardo, quando ela temeu pela morte do menino. Nos Estados Papais, uma lei canônica proibia que crianças batizadas como católicas fossem criadas por pais não católicos, mesmo que o batismo tivesse ocorrido sem o consentimento dos pais.

O batismo, cuja veracidade nunca foi plenamente comprovada, foi suficiente para que a Igreja Católica reivindicasse a guarda de Edgardo. Ele foi levado para Roma e internado na Casa dei Catecumeni, uma instituição destinada à conversão de judeus e outros não católicos.

Lá, foi educado como católico sob a tutela pessoal do Papa Pio IX, que desenvolveu um apego especial pelo menino, tratando-o como um filho adotivo.

A Luta dos Pais e a Reação Internacional

Os pais de Edgardo, desesperados, iniciaram uma campanha incansável para recuperar o filho. Durante doze anos, Momolo e Marianna Mortara apelaram às autoridades eclesiásticas, buscaram apoio de líderes judeus e mobilizaram a opinião pública internacional.

No entanto, suas tentativas foram sistematicamente frustradas pelo Papa Pio IX, que se recusou a devolver Edgardo, argumentando que a salvação da alma do menino era mais importante que os laços familiares.

O caso Mortara chocou a Europa e os Estados Unidos, polarizando opiniões e expondo tensões religiosas e políticas. Liberais e movimentos judaicos denunciaram o sequestro como uma violação dos direitos humanos e um exemplo do autoritarismo dos Estados Papais.

Jornais de todo o mundo cobriram o caso, e figuras proeminentes, como o imperador francês Napoleão III e o governo britânico, pressionaram o Vaticano a devolver Edgardo, sem sucesso.

Por outro lado, setores conservadores católicos defenderam a ação da Igreja, alegando que o batismo tornava Edgardo um cristão, cuja educação deveria ser garantida pela Igreja.

O Contexto do Risorgimento

O Caso Mortara ocorreu em um momento crítico da história italiana: o Risorgimento, movimento pela unificação da Itália, que buscava criar um Estado nacional secular e reduzir o poder temporal da Igreja Católica.

Os Estados Papais, governados diretamente pelo Papa, eram vistos como um obstáculo à unificação, e o sequestro de Edgardo intensificou as críticas ao governo teocrático de Pio IX.

O caso foi explorado por líderes do Risorgimento, como Camillo Cavour, para destacar a necessidade de separar Igreja e Estado.

Apesar de sua relevância, o Caso Mortara é frequentemente negligenciado nas narrativas tradicionais do Risorgimento, que tendem a focar em eventos militares e políticos, como as guerras de independência.

Historiadores modernos, no entanto, reconhecem que o episódio simbolizou as tensões entre modernidade e tradição, além de expor as complexas relações entre católicos e judeus na Europa do século XIX.

A Vida de Edgardo como Católico

Aos 17 anos, já adolescente, Edgardo teve a oportunidade de retornar à sua família, mas a reunificação foi breve. Após um mês com os pais, ele decidiu voltar a Roma, alegando conflitos decorrentes de sua fé católica, que havia abraçado plenamente.

A educação recebida na Casa dei Catecumeni e a influência de Pio IX moldaram profundamente sua identidade religiosa. Em 1873, Edgardo ingressou na Ordem dos Cônegos Regulares de Latrão e foi ordenado sacerdote, adotando o nome de Pio Maria Mortara, em homenagem ao Papa que o criara.

Como sacerdote, Edgardo dedicou sua vida à pregação e à conversão de judeus ao catolicismo, viajando por diversos países da Europa. Ele expressou publicamente seu apoio à beatificação de Pio IX, um desejo que se concretizou em 2000, mas que reacendeu críticas ao Papa devido ao Caso Mortara.

Impacto e Legado

O Caso Mortara teve consequências duradouras. Na Itália, ele contribuiu para o declínio do poder temporal da Igreja Católica, culminando na captura de Roma pelas forças italianas em 1870, que marcou o fim dos Estados Papais. Internacionalmente, o caso alimentou debates sobre liberdade religiosa, direitos parentais e o papel das instituições religiosas na sociedade.

O episódio também gerou um impacto significativo nas comunidades judaicas, que passaram a temer conversões forçadas e a perda de seus filhos. Nos Estados Unidos, o caso mobilizou a nascente comunidade judaica, que organizou protestos e petições, conforme documentado pelo rabino Bertram Korn em seu estudo The Mortara Case: 1858-1859 (1957), o primeiro trabalho acadêmico dedicado ao tema.

Korn, no entanto, foi criticado por imprecisões factuais, como apontou o historiador David I. Kertzer, autor de The Kidnapping of Edgardo Mortara (1997), uma análise detalhada que trouxe nova atenção ao caso.

Na cultura popular, o Caso Mortara inspirou obras como a peça Edgardo Mine, de Alfred Uhry, e um filme planejado por Steven Spielberg, embora o projeto tenha sido abandonado.

Recentemente, a beatificação de Pio IX em 2000 reacendeu o interesse pelo caso, com críticos argumentando que o papel do Papa no sequestro de Edgardo compromete sua santidade.

Morte e Reflexões Finais

Edgardo Mortara faleceu em 11 de março de 1940, em Liège, na Bélgica, aos 88 anos. Sua vida reflete as complexidades de um período marcado por conflitos religiosos e políticos.

O Caso Mortara permanece um símbolo das tensões entre fé, liberdade individual e poder institucional, desafiando-nos a refletir sobre os limites da autoridade religiosa e os direitos das famílias.

Embora pouco mencionado em algumas histórias do Risorgimento, o caso continua a ser estudado por historiadores e debatedores éticos, servindo como um lembrete das consequências de ações justificadas por crenças religiosas em detrimento dos direitos humanos.

A trajetória de Edgardo Mortara, de menino judeu a sacerdote católico, é uma narrativa trágica e fascinante, que ilumina as dinâmicas de poder e identidade em um mundo em transformação.

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