Há uma
hora certa, no coração da noite, uma hora morta, suspensa no tempo, em que as
águas adormecem. É um instante fugaz, quase secreto, quando o mundo silencia e
o pulsar da terra parece hesitar.
Todas
as águas dormem: as do rio, que correm mansas ou bravias; as da lagoa,
espelhando estrelas imóveis; as do açude, quietas sob o peso do barro; as dos
brejões, enredadas em raízes tortuosas; as dos olhos d’água, que brotam tímidos
da terra; e até as águas escondidas nos grotões fundos, onde a luz nunca
alcança.
Quem se
aventurar a ficar acordado, de vigília na barranca, sob o véu da noite inteira,
há de testemunhar o prodígio: a cachoeira, que nunca descansa, interrompe sua
queda.
O choro
das águas cessa, o rugido se cala, e o que se ouve é apenas o sussurro do
vento, como se a própria natureza prendesse o fôlego. A água foi dormir.
Dormem
as águas claras, que refletem o céu em sua transparência; dormem as águas barrentas,
carregadas de histórias da terra; dormem sonolentas, em sua placidez de
espelho.
Gotas
mínimas, caudais imensos, seivas que sobem lentas pelo cerne das plantas, fios
brancos que escorrem das pedras, torrentes que cortam montanhas - todas se
entregam ao sono.
O
orvalho, pendurado nas placas das folhagens, sonha em silêncio, como se
guardasse segredos do amanhecer. Até a água fervida, esquecida nos copos de
cabeceira dos agonizantes, parece repousar, envolta em sua quietude morna.
Mas nem
todas as águas se rendem a essa hora de torpor líquido e inocente. Há aquelas
que resistem, que não conhecem o sono. As águas dos olhos, essas nunca dormem.
Elas
vigiam, incansáveis, nas noites de angústia, quando o coração aperta e a alma
se desmancha. São lágrimas que correm, silenciosas ou em soluços, carregando
dores que não se explicam, saudades que não se nomeiam, amores que se perderam
no escuro.
Essas
águas, nascidas do fundo do ser, desafiam a hora morta e atravessam a noite,
como sentinelas de um sofrimento que não se apaga.
E há
quem diga que, nessa hora, as águas adormecidas sonham. Sonham com os caminhos
que já percorreram, com os mares distantes que um dia encontrarão, com as
chuvas que as trouxeram e as levarão de volta ao céu. Sonham com as vozes que
as tocaram - o canto das lavadeiras, o grito dos meninos que nelas mergulham, o
lamento dos bichos que matam a sede.
E, em
seus sonhos, as águas murmuram umas às outras, em uma língua que só a noite
entende, contando histórias de sertões e cidades, de pedras polidas e margens
erodidas, de vidas que se cruzam e se desfazem.
Quando
o primeiro raio do amanhecer trespassa o horizonte, as águas despertam. A
cachoeira retoma seu canto, o rio recomeça sua pressa, e o orvalho escorre,
tímido, para a terra.
Mas as
águas dos olhos, essas seguem seu curso, alheias ao dia que nasce, porque o
pranto não obedece ao tempo. E assim, o mundo segue, entre o sono das águas e a
vigília das lágrimas, em um ciclo que é ao mesmo tempo eterno e fugaz.
Assim
diria Guimarães Rosa
0 Comentários:
Postar um comentário