Guerra de Canudos: Um Retrato da Resistência e da Tragédia Sertaneja
A
Guerra de Canudos (1896–1897) foi um dos episódios mais marcantes e trágicos da
história brasileira, um conflito civil que expôs as profundas desigualdades
sociais e a negligência do poder público no sertão nordestino.
Este
movimento, liderado pelo carismático e controverso Antônio Conselheiro, foi
retratado de forma poderosa no filme brasileiro Guerra de Canudos (1997), do
gênero drama, dirigido por Sérgio Rezende.
Com um
orçamento de cerca de 6 milhões de dólares e quase quatro anos de produção, o
longa é uma adaptação cinematográfica que mergulha na complexidade histórica e
humana desse conflito, apresentando-o tanto como uma luta de resistência quanto
como uma tragédia inevitável.
O
filme, que contou com atuações memoráveis de José Wilker (como Antônio
Conselheiro), Cláudia Abreu (Luíza), Paulo Betti (Zé Lucena), Marieta Severo
(Penha) e Selton Mello (Tenente Luís Gama), foi um marco no cinema brasileiro.
Além de
sua exibição nos cinemas, foi adaptado como uma minissérie exibida pela Rede
Globo entre 16 e 19 de dezembro de 1997, em quatro capítulos. Essa foi a
primeira vez que a emissora transformou um longa-metragem em minissérie, um
formato que se tornaria mais comum nos anos seguintes.
A
produção também ganhou notoriedade por contar com a participação, como
figurante, do jovem Daniel Alves, futuro craque do futebol, que, na época, viu
na gravação uma oportunidade de ganhar alguns reais e alimentação no sertão
baiano.
O Contexto Histórico
No
final do século XIX, o Nordeste brasileiro vivia um cenário de extrema
precariedade. Secas devastadoras, fome, miséria, violência endêmica e abandono
político castigavam a população, especialmente os mais pobres.
A
Proclamação da República, em 1889, trouxe mudanças que nem todos acolheram bem.
A introdução do casamento civil, a cobrança de impostos e a secularização do
Estado foram vistas por muitos sertanejos como afrontas aos valores
tradicionais e religiosos.
Nesse
contexto de desespero e desamparo, surgiu Antônio Conselheiro, um beato que,
após anos peregrinando pelo sertão, tornou-se uma figura messiânica para
milhares de nordestinos.
Antônio
Conselheiro acreditava ter sido enviado por Deus para combater as injustiças
sociais e os "pecados" da jovem República. Ele pregava a igualdade,
condenava a opressão dos poderosos e prometia uma sociedade mais justa,
inspirada em princípios cristãos.
Em
1893, ele e seus seguidores fundaram o povoado de Belo Monte, em Canudos, no
sertão da Bahia, uma comunidade autossuficiente que atraía sertanejos,
ex-escravizados, jagunços e outros marginalizados.
Para o
governo republicano, no entanto, Canudos representava uma ameaça: rumores de
que Conselheiro planejava restaurar a monarquia e desafiar a ordem republicana
alimentaram a paranoia das elites.
A Guerra e o Filme
O
conflito teve início em novembro de 1896, quando uma expedição militar foi
enviada para reprimir os "fanáticos" de Canudos. Subestimando a
resistência dos conselheiristas, as forças do governo sofreram derrotas
humilhantes em emboscadas organizadas pelos jagunços, que conheciam bem o
terreno árido e hostil do sertão.
O
governo da Bahia, incapaz de conter o movimento, pediu apoio ao governo
federal, liderado pelo presidente Prudente de Morais. Até outubro de 1897,
quatro expedições militares foram enviadas, culminando na destruição total de
Canudos e no massacre de milhares de seus habitantes, incluindo mulheres,
crianças e idosos.
O filme
de Sérgio Rezende retrata essa tragédia sob a perspectiva de uma família
sertaneja dividida. Zé Lucena (Paulo Betti) e Penha (Marieta Severo),
fervorosos seguidores de Antônio Conselheiro, decidem abandonar tudo para se
juntar à comunidade de Belo Monte.
Sua
filha mais velha, Luíza (Cláudia Abreu), rejeita a peregrinação e as ideias do
beato, optando por seguir seu próprio caminho. Em um ato de rebeldia, ela foge
de casa e, para sobreviver, acaba se tornando prostituta, vivendo de forma
independente, mas marcada pela solidão e pela violência do sertão.
Enquanto
Luíza enfrenta suas próprias batalhas, sua família tenta resistir em Canudos,
onde a situação se agrava com os ataques do Exército. A fome força os moradores
a comerem qualquer animal que encontram, e a fé em Conselheiro é testada diante
do cerco implacável.
O filme
intercala cenas de combates intensos, com emboscadas dos jagunços contra os
soldados, e momentos de profunda humanidade, como as orações coletivas dos
conselheiristas e os conflitos internos de Luíza.
A Jornada de Luíza
A
narrativa ganha contornos ainda mais dramáticos com a trajetória de Luíza. Após
a morte de seu marido, Arimateia (Tuca Andrade), ela se envolve com soldados,
usando sua posição para sobreviver.
Um dos
militares, o tenente Luís Gama (Selton Mello), apaixona-se por ela, e Luíza,
apesar de sua desconfiança inicial, também se deixa envolver por ele. No
entanto, o destino a coloca novamente frente a frente com Canudos.
Após a
morte brutal de sua mãe, Penha, assassinada durante o conflito, Luíza decide
lutar ao lado dos conselheiristas, movida por um misto de culpa, raiva e
lealdade à sua origem.
Em uma
das cenas mais impactantes do filme, Luíza, agora imersa na resistência, acaba
matando o próprio amante, o tenente Luís Gama, durante um confronto.
Esse
ato simboliza o trágico destino de Canudos, onde laços pessoais são destruídos
pela violência e pela guerra. O filme termina com uma imagem poderosa: Luíza e
sua irmã mais nova, únicas sobreviventes da família, rezam entre os destroços
fumegantes de Belo Monte, cercadas por corpos e ruínas, em um lamento
silencioso pela perda de tudo o que conheciam.
Curiosidades e Impacto
Um
detalhe curioso da produção é a participação de Daniel Alves, então um jovem de
Juazeiro, como figurante. Em entrevistas anos depois, o jogador relembrou com
humor sua experiência: “Eles precisavam de figurantes, e pagavam R$ 5 ou R$ 10
por dia, além de comida. Era uma oportunidade que ninguém queria perder.
Apareci no filme, mas duvido que alguém me reconheça no meio da multidão!”
Essa
história reflete o impacto da produção na região, que mobilizou comunidades
locais e deixou um legado cultural.
O filme
também se destaca por sua reconstrução histórica, com cenários que retratam
fielmente o sertão baiano, e pela trilha sonora, que reforça a tensão e a
melancolia da narrativa.
A
atuação de José Wilker como Antônio Conselheiro é especialmente marcante, capturando
a dualidade do líder: um homem de fé inabalável, mas cuja visão utópica
conduziu seus seguidores a um fim trágico.
Reflexão
Guerra
de Canudos não é apenas um filme sobre um conflito histórico; é um retrato das
desigualdades que persistem no Brasil e da força de uma comunidade que, apesar
de derrotada, resistiu até o fim por seus ideais.
A
história de Luíza reflete as escolhas difíceis impostas pela miséria e pela
guerra, enquanto Antônio Conselheiro simboliza a busca por esperança em meio ao
abandono.
O filme nos convida a refletir: quantas “Canudos” ainda existem, onde a fé e a resistência são as únicas armas contra a opressão?
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