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quarta-feira, setembro 14, 2022

Adeus.

Já gastamos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes.

Gastamos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, gastámos as mãos à força de as apertarmos, gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.

Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro; era como se todas as coisas fossem minhas: quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.

E eu acreditava.

Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos, era no tempo em que o teu corpo era um aquário, era no tempo em que os meus olhos eram realmente peixes verdes.

Hoje são apenas os meus olhos.

É pouco, mas é verdade, uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor, já não se passa absolutamente nada.

E, no entanto, antes das palavras gastas, tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.

Dentro de ti não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugênio de Andrade

 ***

Eugênio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas nasceu em Fundão, Povoa de Atalaia – Portugal no dia 19 de janeiro de 1923 e foi um poeta português.

O poeta mudou-se para Lisboa aos dez anos devido à separação dos seus pais.

Frequentou o Liceu Passos Manuel e a Escola Técnica Machado de Castro, tendo escrito os seus primeiros poemas em 1936. Em 1938, aos 15 anos, enviou alguns desses poemas a Antônio Botto que, gostando do que leu, o quis conhecer, encorajando-lhe a veia literária.

Em 1943 mudou-se para Coimbra onde regressa depois de cumprido o serviço militar convivendo com Miguel Torga e Eduardo Lourenço. Tornou-se funcionário público em 1947, exercendo durante 35 anos as funções de Inspetor Administrativo do Ministério da Saúde.

Uma transferência de serviço levá-lo-ia a instalar-se no Porto em 1950, numa casa que só deixou mais de quatro décadas depois, quando se mudou para o edifício da extinta Fundação Eugênio de Andrade na Foz do Douro.

Durante os anos que se seguem até à data da sua morte, o poeta fez diversas viagens, foi convidado para participar em vários eventos e travou amizades com muitas personalidades da cultura portuguesa e estrangeira.

Apesar do seu enorme prestígio nacional e internacional, Eugênio de Andrade sempre viveu distanciado da chamada vida social, literária ou mundana, tendo o próprio justificado as suas raras aparições públicas com “essa debilidade do coração que é a amizade”.

Recebeu inúmeras distinções, entre as quais o Prémio da Associação Internacional de Críticos Literários (1986), Prêmio D. Dinis da Fundação Casa de Mateus (1988), Grande Prêmio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1989) e Prêmio Camões (2001). 

Em 8 de julho de 1982 foi feito Grande-Oficial da Antiga, Nobilíssima e Esclarecida Ordem Militar de Sant’lago da Espada, do Mérito Cientifico, Literário e Artístico e em 4 de Fevereiro de 1989 foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito.

Faleceu em 13 de junho de 2005, no Porto, após uma doença neurológica prolongada. Encontra-se sepultado no cemitério do Prado do Repouso, no Porto. A sua campa é rasa em mármore branco, desenhada pelo arquiteto seu amigo Siza Vieira, possuindo os versos do seu livro As Mãos e os Frutos.

Em 1940, José Fontinhas, contava 17 anos, publicou Narciso (escrito em 1939), poema ao estilo de Botto e homossexualmente explícito, uma estreia que depressa achou embaraçosa.

Em 1942, já sob o pseudónimo de Eugênio de Andrade, publicou Adolescente. A sua consagração acontece mais tarde, em 1948, com a publicação de As mãos e os frutos, que mereceu os aplausos de críticos como Jorge de Sena ou Vitorino Nemésio. A obra poética de Eugénio de Andrade é essencialmente lírica, considerada por José Saramago como uma “poesia do corpo a que chega mediante uma depuração contínua”.

Ainda na década de 40 colabora no seminário Mundo Literário (1946-1948).

Entre as dezenas de obras que publicou encontram-se, na poesia, Os amantes sem dinheiro (1950), As palavras interditas (1951), Escrita da Terra (1974), Matéria Solar (1980), Rente ao dizer (1992), Ofício da paciência (1994), O sal da língua (1995) e Os lugares do lume (1998).

Em prosa, publicou Os afluentes do silêncio (1968), Rosto precário (1979) e À sombra da memória (1993), além das histórias infantis História da égua branca (1977) e Aquela nuvem e as outras (1986).

Foi também tradutor de algumas obras, como dos espanhóis Frederico Garcia Lorca e Antônio Buero Vallejo, da poetisa grega clássica Safo (Poemas e fragmentos, em 1974), do grego moderno Yannis Ritsos, do francês Renê Char e do argentino Jorge Luis Borges.

Em setembro de 2003 a sua obra Os sulcos da sede foi distinguida com o prêmio de poesia do Pen Clube Português. Tem uma biblioteca com o seu nome no Fundão.

 


 

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