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domingo, agosto 10, 2025

Adeus.


 

Já gastamos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos sobrou não basta para aquecer o frio que se instala entre quatro paredes. Gastamos tudo, exceto o silêncio - esse silêncio pesado, que agora fala mais alto que qualquer palavra outrora trocada.

Gastamos os olhos com o sal das lágrimas, gastamos as mãos de tanto as apertarmos em busca de um conforto que já não responde. Gastamos o relógio, contando os minutos em esperas inúteis, e as pedras das esquinas, que testemunharam nossos passos incertos, também se cansaram de nós.

Meto as mãos nos bolsos e encontro apenas o vazio. Outrora, tínhamos tanto para oferecer um ao outro. Era como se o mundo inteiro me pertencesse: quanto mais eu te dava, mais eu tinha para dar.

Havia uma abundância que não explicava, uma riqueza que nascia do simples ato de te amar. Às vezes, tu dizias: “Os teus olhos são peixes verdes.” E eu acreditava. Acreditava porque, ao teu lado, tudo parecia possível.

O mundo se transformava, e teus olhos faziam dos meus um aquário de sonhos, onde nadavam promessas e futuros. Era o tempo dos segredos, quando teu corpo era um mistério que eu desejava desvendar, quando meus olhos, de fato, brilhavam como peixes verdes, cheios de vida e cor.

Hoje, são apenas olhos. Comuns, opacos, como tantos outros. O encanto se desfez, e com ele a magia que nos unia. As palavras, que antes faziam o coração tremer, agora são ecos vazios.

Quando digo “meu amor”, já não há resposta, nem tremor, nem calor. É apenas som, perdido no ar. E, no entanto, lembro-me de como tudo estremecia antes, quando o simples murmúrio do teu nome no silêncio do meu coração bastava para incendiar o mundo.

Cada palavra era um universo, cada olhar uma promessa. Mas gastamos tudo. O que resta é um vazio que não pede nada, nem água, nem consolo. O passado, agora, é inútil como um trapo velho, desbotado pelo tempo.

Já te disse: as palavras estão gastas. E com elas, parece que nós também nos gastamos. Adeus.

Reflexão sobre o contexto e os acontecimentos

Este poema, de Eugénio de Andrade, é um lamento delicado e profundo sobre o esgotamento de um amor que já foi vibrante. Ele reflete a universalidade da experiência humana de perder a conexão com alguém que, um dia, foi tudo.

A metáfora das palavras gastas evoca a erosão do diálogo, do afeto e da intimidade, um tema que ressoa em muitas relações contemporâneas, onde a rotina, os mal-entendidos ou o peso do tempo podem transformar o que era mágico em algo ordinário.

Nos dias atuais, o poema ganha ainda mais força em um mundo onde as relações muitas vezes são mediadas por telas e mensagens rápidas, que podem acelerar o desgaste das palavras.

A superficialidade das interações digitais, por vezes, substitui a profundidade dos encontros reais, e o silêncio - como descrito no texto - torna-se não apenas uma ausência de palavras, mas um abismo entre duas pessoas.

 Movimentos culturais recentes, como aqueles que incentivam a reconexão emocional e a comunicação autêntica, reforçam a relevância do poema.

Por exemplo, terapias de casal e campanhas de saúde mental, como as promovidas por organizações que abordam a importância de expressar sentimentos, ecoam a necessidade de resgatar as palavras antes que se tornem “gastas”.

Além disso, o poema toca em uma melancolia que transcende o amor romântico. Ele fala da finitude das coisas, da efemeridade dos sentimentos e da dificuldade de manter viva a chama do que um dia foi intenso.

É um convite à reflexão sobre como preservamos o que é valioso em nossas vidas, sejam relações, sonhos ou memórias. O “adeus” final não é apenas uma despedida, mas um reconhecimento doloroso de que, às vezes, o que resta é deixar ir.

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