Já gastamos as palavras
pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro
paredes.
Gastamos tudo menos o
silêncio.
Gastámos os olhos com o sal
das lágrimas, gastámos as mãos à força de as apertarmos, gastámos o relógio e
as pedras das esquinas em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto
para dar um ao outro; era como se todas as coisas fossem minhas: quanto mais te
dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus
olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava, porque ao teu
lado todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos
segredos, era no tempo em que o teu corpo era um aquário, era no tempo em que
os meus olhos eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus
olhos.
É pouco, mas é verdade, uns
olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu
amor, já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das
palavras gastas, tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam só de
murmurar o teu nome no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti não há nada
que me peça água.
O passado é inútil como um
trapo.
E já te disse: as palavras
estão gastas.
Adeus.
Eugênio de Andrade
Eugênio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas nasceu em Fundão, Povoa de Atalaia – Portugal no dia 19 de
janeiro de 1923 e foi um poeta português.
O poeta mudou-se
para Lisboa aos dez anos devido à separação dos seus pais.
Frequentou o Liceu Passos Manuel e a Escola
Técnica Machado de Castro, tendo escrito os seus primeiros poemas em 1936. Em
1938, aos 15 anos, enviou alguns desses poemas a Antônio Botto que,
gostando do que leu, o quis conhecer, encorajando-lhe a veia literária.
Em 1943 mudou-se para Coimbra onde regressa
depois de cumprido o serviço militar convivendo com Miguel Torga e Eduardo
Lourenço. Tornou-se funcionário público em 1947, exercendo durante 35 anos
as funções de Inspetor Administrativo do Ministério da Saúde.
Uma
transferência de serviço levá-lo-ia a instalar-se no Porto em 1950, numa
casa que só deixou mais de quatro décadas depois, quando se mudou para o
edifício da extinta Fundação Eugênio de Andrade na Foz do Douro.
Durante os anos que se seguem até à data da sua morte,
o poeta fez diversas viagens, foi convidado para participar em vários eventos e
travou amizades com muitas personalidades da cultura portuguesa e estrangeira.
Apesar do seu enorme prestígio nacional e
internacional, Eugênio de Andrade sempre viveu distanciado da chamada vida
social, literária ou mundana, tendo o próprio justificado as suas raras
aparições públicas com “essa debilidade do coração que é a amizade”.
Recebeu inúmeras distinções, entre as quais o Prémio
da Associação Internacional de Críticos Literários (1986), Prêmio D. Dinis da
Fundação Casa de Mateus (1988), Grande Prêmio de Poesia da Associação
Portuguesa de Escritores (1989) e Prêmio Camões (2001).
Em 8 de julho
de 1982 foi feito Grande-Oficial da Antiga, Nobilíssima e Esclarecida Ordem
Militar de Sant’lago da Espada, do Mérito Cientifico, Literário e Artístico e
em 4 de Fevereiro de 1989 foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito.
Faleceu em 13 de junho de 2005, no Porto, após uma
doença neurológica prolongada. Encontra-se sepultado no cemitério do Prado
do Repouso, no Porto. A sua campa é rasa em mármore branco, desenhada pelo
arquiteto seu amigo Siza Vieira, possuindo os versos do seu livro As
Mãos e os Frutos.
Em 1940, José
Fontinhas, contava 17 anos, publicou Narciso (escrito em
1939), poema ao estilo de Botto e homossexualmente explícito, uma estreia que
depressa achou embaraçosa.
Em 1942, já sob o pseudónimo de Eugênio de Andrade,
publicou Adolescente. A sua consagração acontece mais tarde, em
1948, com a publicação de As mãos e os frutos, que mereceu os
aplausos de críticos como Jorge de Sena ou Vitorino Nemésio. A obra poética de
Eugénio de Andrade é essencialmente lírica, considerada por José Saramago como
uma “poesia do corpo a que chega mediante uma depuração contínua”.
Ainda na década de 40 colabora no seminário Mundo
Literário (1946-1948).
Entre as dezenas de obras que publicou encontram-se,
na poesia, Os amantes sem dinheiro (1950), As palavras
interditas (1951), Escrita da Terra (1974), Matéria
Solar (1980), Rente ao dizer (1992), Ofício
da paciência (1994), O sal da língua (1995) e Os
lugares do lume (1998).
Em prosa, publicou Os afluentes do silêncio (1968), Rosto
precário (1979) e À sombra da memória (1993), além
das histórias infantis História da égua branca (1977) e Aquela
nuvem e as outras (1986).
Foi também tradutor de algumas obras, como dos
espanhóis Frederico Garcia Lorca e Antônio Buero Vallejo, da poetisa grega
clássica Safo (Poemas e fragmentos, em 1974), do grego moderno
Yannis Ritsos, do francês Renê Char e do argentino Jorge Luis Borges.
Em setembro de 2003 a sua obra Os sulcos da
sede foi distinguida com o prêmio de poesia do Pen Clube Português. Tem
uma biblioteca com o seu nome no Fundão.
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