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sexta-feira, julho 12, 2024

O rei Hamurabi



O Código de Hamurabi e a Legitimação do Poder: Reflexões Históricas e Paralelos Contemporâneos

Por volta de 1754 a.C., o rei Hamurabi, sexto monarca da Primeira Dinastia da Babilônia, consolidou seu legado ao promulgar o Código de Hamurabi, um dos primeiros conjuntos de leis escritas da humanidade.

Gravado em uma estela de diorita de cerca de 2,25 metros de altura e hoje preservado no Museu do Louvre, o código não tinha apenas a função prática de regulamentar a sociedade babilônica, mas também o objetivo político de apresentar Hamurabi como um governante justo, sábio e divinamente inspirado, projetando sua imagem para as gerações futuras.

O Código de Hamurabi é composto por cerca de 282 leis que abordam temas como comércio, propriedade, contratos, família, crimes e punições. Baseado no princípio da lex talionis (“olho por olho, dente por dente”), as normas refletiam a estrutura hierárquica da época, com penas que variavam conforme a classe social do infrator e da vítima.

Por exemplo, a punição por um crime contra um nobre era mais severa do que contra um plebeu ou escravo. Embora o código fosse aplicado na prática, sua função simbólica era igualmente relevante: ele representava a centralização do poder do rei e a tentativa de unificar as tradições judiciais de um império que abrangia diversas cidades-estado.

Hamurabi afirmava que as leis lhe foram entregues pelo deus Shamash, o senhor da justiça, e que continham princípios universais e eternos. Essa associação com o divino não era apenas uma expressão de religiosidade, mas uma estratégia política comum no Oriente Próximo Antigo.

Ao se declarar como o intermediário dos deuses, Hamurabi legitimava seu governo e conferia às suas decisões um caráter incontestável. No epílogo do código, ele proclama:

“Estas são as justas leis que Hamurabi, o rei sábio, estabeleceu, e, por meio delas, conduziu a terra no caminho da verdade e da retidão. [...] Eu sou Hamurabi, rei nobre. Não me eximi da minha responsabilidade para com a humanidade, entregue a meus cuidados pelo rei Enlil, e de cuja condução Deus Marduk me encarregou.”

Essa retórica reforça a ideia de que o rei era um “pastor” divinamente escolhido para guiar, uma narrativa que servia para consolidar sua autoridade e justificar a obediência dos súditos.

O código, portanto, era mais do que um conjunto de regras; era um instrumento de propaganda que projetava a imagem de um governante ideal.

Contexto Histórico e Impacto do Código de Hamurabi foi criado em um período de apogeu do Império Babilônico. Hamurabi unificou a Mesopotâmia após conquistar cidades como Larsa, Uruk e Mari, transformando a Babilônia em uma potência regional.

A promulgação do código ocorreu no final de seu reinado, provavelmente como parte de um esforço para padronizar a justiça em territórios culturalmente diversos.

Embora o código não fosse o primeiro conjunto de leis da história - existiam códigos anteriores, como o de Ur-Nammu (c. 2100 a.C.) -, ele se destaca pela sua abrangência e pela preservação detalhada de suas normas.

O impacto do código foi duradouro. Mesmo após a morte de Hamurabi, em cerca de 1750 a.C., suas leis influenciaram as práticas judiciais da Mesopotâmia por séculos. Além disso, o código oferece aos historiadores modernos uma visão sobre a sociedade babilônica, revelando detalhes sobre economia, relações sociais e valores culturais.

Por exemplo, as leis relacionadas ao comércio e à agricultura mostram a importância do rio Eufrates para a prosperidade da região, enquanto as normas sobre o casamento e a herança indicam o caráter patriarcal da sociedade.

A “Vontade Divina” como Ferramenta de Poder

Ao longo da história, a reivindicação da “vontade divina” tem sido uma ferramenta recorrente para legitimar o poder e justificar atos de dominação. No Egito Antigo, os faraós eram considerados deuses encarnados; na Europa medieval, reis governavam pelo “direito divino”; e em outras culturas, líderes se apresentavam como escolhidos por forças sobrenaturais.

Hamurabi não foi o primeiro a usar essa estratégia, mas o seu código é um exemplo paradigmático de como a religião pode ser entrelaçada com a lei para reforçar o controle social.

Essa prática não se limita ao passado. Embora os governos modernos sejam, em grande parte, seculares, ainda encontramos paralelos na maneira como líderes políticos utilizam ideologias, valores universais ou narrativas de “destino nacional” para justificar suas ações.

Por exemplo, regimes autoritários frequentemente se apropriam de símbolos culturais ou religiosos para consolidar apoio popular, enquanto democracias contemporâneas podem invocar conceitos como “liberdade” ou “progresso” para legitimar políticas internas ou intervenções externas.

Assim como Hamurabi usava a autoridade de Shamash, líderes modernos recorrem a narrativas que transcendem o indivíduo, criando uma percepção de inevitabilidade ou superioridade moral.

Além disso, a ideia de hierarquia” justificada persiste. No Código de Hamurabi, a desigualdade entre classes era codificada como parte de uma ordem natural.

Nos dias atuais, embora as leis sejam teoricamente igualitárias, desigualdades econômicas e sociais ainda moldam o acesso à justiça em muitos países. A retórica de “igualdade perante a lei” frequentemente mascara privilégios estruturais, assim como o código babilônico refletia as divisões de sua época.

Reflexões Finais

O Código de Hamurabi é mais do que um marco jurídico; é um espelho da complexidade do poder, da justiça e da legitimação. Ele nos desafia a questionar como as leis são criadas, por quem e com quais propósitos.

Será que os governantes modernos, ao promulgar leis, também buscam projetar uma imagem de sabedoria e retidão para a posteridade? E até que ponto as narrativas que sustentam o poder - sejam elas religiosas, ideológicas ou culturais - servem para unificar sociedades ou para perpetuar desigualdades?

Ao refletirmos sobre essas questões, o legado de Hamurabi permanece relevante. Sua estela, erguida há quase quatro mil anos, continua a nos ensinar que a justiça é, acima de tudo, uma construção humana - sujeita aos interesses, valores e contradições de quem a define.

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