A
Inquisição Espanhola, instituída oficialmente em 1478 por meio de uma bula
papal de Sixto IV, é amplamente reconhecida como a mais notória entre as
inquisições da história, tanto por sua extensão quanto pela intensidade de suas
práticas.
Diferentemente
de outras inquisições medievais, que eram controladas diretamente pela Igreja,
a Inquisição Espanhola foi colocada sob a autoridade dos monarcas Fernando II
de Aragão e Isabel I de Castela, conferindo aos reis um poder quase absoluto
sobre sua administração.
Este
controle estatal, aliado à obsessão por uniformidade religiosa em um contexto
de consolidação política da Espanha, tornou-a um instrumento de repressão não
apenas religiosa, mas também social e cultural.
Contexto e Motivações
A
Inquisição Espanhola surgiu em um período de unificação territorial e religiosa
na Península Ibérica, após séculos de convivência entre cristãos, muçulmanos e
judeus.
Com
a Reconquista culminando na tomada de Granada em 1492, os Reis Católicos
buscaram consolidar o poder por meio da homogeneização religiosa, visando
eliminar influências judaicas e islâmicas.
Conversos
(judeus convertidos ao cristianismo) e mouriscos (muçulmanos convertidos) eram
frequentemente suspeitos de manter práticas religiosas secretas, o que
alimentava a paranoia de "judaização" ou "islamização" da
sociedade cristã.
A
ideia de limpeza de sangre (pureza de sangue), que privilegiava aqueles sem
ascendência judaica ou mourisca, tornou-se uma obsessão cultural, reforçando a
discriminação e a exclusão.
Práticas e Perseguições
A
Inquisição Espanhola ficou marcada por sua busca implacável por hereges,
especialmente conversos acusados de judaizar. Como relata o historiador David
Landes, a perseguição transformou-se em uma "caça às bruxas"
alimentada por denunciantes pagos, vizinhos desconfiados e uma fixação racista
pela pureza de sangue.
Indícios
triviais de práticas judaicas, como a recusa de carne de porco, toalhas lavadas
às sextas-feiras (em preparação para o Shabat), orações sussurradas ou até
mesmo frequência irregular à missa, eram suficientes para levantar suspeitas.
Até
mesmo hábitos de higiene, como tomar banho regularmente, eram considerados
sinais de apostasia, especialmente entre marranos (conversos judaicos) e
mouriscos.
Nos
registros da Inquisição, frases como "o acusado era conhecido por tomar
banho" aparecem com frequência, refletindo a absurda associação entre
limpeza e heresia. Landes observa que essa mentalidade revelou um retrocesso
cultural: "Sujidade herdada: as pessoas limpas não têm de se lavar."
Os
Autos de Fé, cerimônias públicas nas quais os acusados eram julgados e, muitas
vezes, executados, tornaram-se símbolos do terror inquisitorial. O primeiro
Auto de Fé ocorreu em 6 de fevereiro de 1481, em Sevilha, onde seis indivíduos
foram queimados vivos.
Apenas
em novembro daquele ano, na mesma cidade, 288 pessoas foram executadas na
fogueira, enquanto 79 foram condenadas à prisão perpétua. Essas cerimônias não
eram apenas punições, mas também espetáculos de propaganda, destinados a
intimidar a população e reforçar o poder da Igreja e da Coroa.
Tomás de Torquemada e o Auge da Inquisição
Em
1483, Tomás de Torquemada, um frade dominicano, foi nomeado Inquisidor Geral,
tornando-se a figura central da Inquisição Espanhola. Sua reputação como
implacável e fanático consolidou-o como a face mais temida do tribunal.
Durante
seu mandato, de 1483 a 1498, a Inquisição intensificou suas atividades,
ampliando o uso de interrogatórios, confissões forçadas e punições severas.
Embora
o número exato de execuções sob Torquemada seja debatido, historiadores como
Henry Kamen estimam cerca de 2.000 mortes, um número significativo, mas menor
do que as cifras exageradas da chamada "lenda negra".
Torquemada
também foi responsável por estruturar o Consejo de la Suprema y General
Inquisición, estabelecido em 1483, que centralizou o controle do tribunal e
garantiu sua eficiência burocrática.
Sob
sua liderança, a Inquisição expandiu-se para outras regiões da Espanha e,
posteriormente, para as colônias espanholas nas Américas, onde continuou a
perseguir hereges, indígenas convertidos e outros grupos considerados desviantes.
Tortura e Controvérsias Historiográficas
A
questão da tortura é um dos pontos mais controversos na história da Inquisição
Espanhola. Segundo o historiador Rino Cammilleri, que cita o especialista
Bartolomé Benassa, a tortura era usada de forma "relativamente pouco
frequente e geralmente moderada" em comparação com outras práticas
judiciais da época.
Henry
Kamen, por sua vez, argumenta que o número proporcionalmente baixo de execuções
desmente a imagem de um tribunal sedento de sangue, sugerindo que as descrições
de sadismo são exageradas e fazem parte da "lenda negra" - uma
narrativa protestante do século XVI que demonizava a Espanha católica.
No
entanto, essa visão revisionista é contestada por outros historiadores. Toby
Green, por exemplo, reconhece que a "lenda negra" pode ter exagerado
certos aspectos, mas alerta contra a criação de uma "lenda branca"
que minimize os abusos. Green sustenta que a tortura, embora não universal, era
uma prática habitual, especialmente em casos de suspeita de judaísmo ou
heresia.
Os
registros da Inquisição, muitos ainda em estudo, revelam o uso de métodos como
a corda (suspensão por cordas), a água (simulação de afogamento) e o potro
(estiramento do corpo), que causavam sofrimento físico e psicológico. Além
disso, testemunhos de vítimas, como os preservados em relatos de conversos,
descrevem um clima de medo e coerção.
Impactos Sociais e Culturais
A
Inquisição Espanhola teve consequências profundas na sociedade ibérica. A
intolerância religiosa e a obsessão pela limpeza de sangre criaram uma cultura
de desconfiança e delação, fragmentando comunidades e reforçando divisões
sociais.
Como
observa Landes, a repressão cultural e intelectual contribuiu para o atraso da
Espanha e de Portugal na Revolução Científica, enquanto países do norte da
Europa, menos restritivos, avançavam em ciência e tecnologia.
A
expulsão dos judeus em 1492 e a perseguição aos mouriscos enfraqueceram a
economia, pois muitos eram artesãos, comerciantes e intelectuais.
Além
disso, a Inquisição gerou um impacto psicológico duradouro. O medo de ser
denunciado por vizinhos ou até familiares criou uma atmosfera de paranoia,
enquanto os Autos de Fé reforçavam a mensagem de que qualquer desvio, por menor
que fosse, poderia levar à punição.
A
longo prazo, a Inquisição contribuiu para a estagnação cultural da Península
Ibérica, enquanto a Europa setentrional avançava rumo à modernidade.
A "Lenda Negra" versus a "Lenda Branca"
A
historiografia moderna continua dividida sobre a Inquisição Espanhola. A
"lenda negra", alimentada por relatos sensacionalistas de cronistas
protestantes, retratava a Inquisição como um tribunal bárbaro e sanguinário.
Historiadores
como Kamen e Benassa buscam corrigir esses exageros, destacando que a
Inquisição operava dentro de um contexto judicial da época, onde a tortura e as
execuções eram práticas comuns em tribunais seculares e religiosos.
No
entanto, a tentativa de desmistificar a "lenda negra" não deve levar
à criação de uma "lenda branca", que ignore os abusos reais. Como
Toby Green argumenta, é essencial reconhecer o sofrimento das vítimas sem
distorcer a realidade histórica.
Conclusão
A
Inquisição Espanhola, com sua mistura de fanatismo religioso, poder estatal e
repressão social, permanece um dos capítulos mais sombrios da história europeia.
Sob
a liderança de figuras como Tomás de Torquemada, o tribunal não apenas
perseguiu supostos hereges, mas também moldou a sociedade ibérica, promovendo a
intolerância e atrasando o progresso cultural e científico.
Embora
revisões historiográficas tenham suavizado a imagem de um tribunal
exclusivamente cruel, os milhares de registros e testemunhos pessoais atestam o
impacto devastador da Inquisição, tanto para as vítimas quanto para os
perseguidores.
Corrigir
mitos não deve apagar a realidade de um sistema que, movido pelo zelo religioso
e pela ganância, deixou cicatrizes profundas na história da Espanha e do mundo.
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