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quarta-feira, setembro 25, 2024

A Inquisição Espanhola


A Inquisição Espanhola, instituída oficialmente em 1478 por meio de uma bula papal de Sixto IV, é amplamente reconhecida como a mais notória entre as inquisições da história, tanto por sua extensão quanto pela intensidade de suas práticas.

Diferentemente de outras inquisições medievais, que eram controladas diretamente pela Igreja, a Inquisição Espanhola foi colocada sob a autoridade dos monarcas Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela, conferindo aos reis um poder quase absoluto sobre sua administração.

Este controle estatal, aliado à obsessão por uniformidade religiosa em um contexto de consolidação política da Espanha, tornou-a um instrumento de repressão não apenas religiosa, mas também social e cultural.

Contexto e Motivações

A Inquisição Espanhola surgiu em um período de unificação territorial e religiosa na Península Ibérica, após séculos de convivência entre cristãos, muçulmanos e judeus.

Com a Reconquista culminando na tomada de Granada em 1492, os Reis Católicos buscaram consolidar o poder por meio da homogeneização religiosa, visando eliminar influências judaicas e islâmicas.

Conversos (judeus convertidos ao cristianismo) e mouriscos (muçulmanos convertidos) eram frequentemente suspeitos de manter práticas religiosas secretas, o que alimentava a paranoia de "judaização" ou "islamização" da sociedade cristã.

A ideia de limpeza de sangre (pureza de sangue), que privilegiava aqueles sem ascendência judaica ou mourisca, tornou-se uma obsessão cultural, reforçando a discriminação e a exclusão.

Práticas e Perseguições

A Inquisição Espanhola ficou marcada por sua busca implacável por hereges, especialmente conversos acusados de judaizar. Como relata o historiador David Landes, a perseguição transformou-se em uma "caça às bruxas" alimentada por denunciantes pagos, vizinhos desconfiados e uma fixação racista pela pureza de sangue.

Indícios triviais de práticas judaicas, como a recusa de carne de porco, toalhas lavadas às sextas-feiras (em preparação para o Shabat), orações sussurradas ou até mesmo frequência irregular à missa, eram suficientes para levantar suspeitas.

Até mesmo hábitos de higiene, como tomar banho regularmente, eram considerados sinais de apostasia, especialmente entre marranos (conversos judaicos) e mouriscos.

Nos registros da Inquisição, frases como "o acusado era conhecido por tomar banho" aparecem com frequência, refletindo a absurda associação entre limpeza e heresia. Landes observa que essa mentalidade revelou um retrocesso cultural: "Sujidade herdada: as pessoas limpas não têm de se lavar."

Os Autos de Fé, cerimônias públicas nas quais os acusados eram julgados e, muitas vezes, executados, tornaram-se símbolos do terror inquisitorial. O primeiro Auto de Fé ocorreu em 6 de fevereiro de 1481, em Sevilha, onde seis indivíduos foram queimados vivos.

Apenas em novembro daquele ano, na mesma cidade, 288 pessoas foram executadas na fogueira, enquanto 79 foram condenadas à prisão perpétua. Essas cerimônias não eram apenas punições, mas também espetáculos de propaganda, destinados a intimidar a população e reforçar o poder da Igreja e da Coroa.

Tomás de Torquemada e o Auge da Inquisição

Em 1483, Tomás de Torquemada, um frade dominicano, foi nomeado Inquisidor Geral, tornando-se a figura central da Inquisição Espanhola. Sua reputação como implacável e fanático consolidou-o como a face mais temida do tribunal.

Durante seu mandato, de 1483 a 1498, a Inquisição intensificou suas atividades, ampliando o uso de interrogatórios, confissões forçadas e punições severas.

Embora o número exato de execuções sob Torquemada seja debatido, historiadores como Henry Kamen estimam cerca de 2.000 mortes, um número significativo, mas menor do que as cifras exageradas da chamada "lenda negra".

Torquemada também foi responsável por estruturar o Consejo de la Suprema y General Inquisición, estabelecido em 1483, que centralizou o controle do tribunal e garantiu sua eficiência burocrática.

Sob sua liderança, a Inquisição expandiu-se para outras regiões da Espanha e, posteriormente, para as colônias espanholas nas Américas, onde continuou a perseguir hereges, indígenas convertidos e outros grupos considerados desviantes.

Tortura e Controvérsias Historiográficas

A questão da tortura é um dos pontos mais controversos na história da Inquisição Espanhola. Segundo o historiador Rino Cammilleri, que cita o especialista Bartolomé Benassa, a tortura era usada de forma "relativamente pouco frequente e geralmente moderada" em comparação com outras práticas judiciais da época.

Henry Kamen, por sua vez, argumenta que o número proporcionalmente baixo de execuções desmente a imagem de um tribunal sedento de sangue, sugerindo que as descrições de sadismo são exageradas e fazem parte da "lenda negra" - uma narrativa protestante do século XVI que demonizava a Espanha católica.

No entanto, essa visão revisionista é contestada por outros historiadores. Toby Green, por exemplo, reconhece que a "lenda negra" pode ter exagerado certos aspectos, mas alerta contra a criação de uma "lenda branca" que minimize os abusos. Green sustenta que a tortura, embora não universal, era uma prática habitual, especialmente em casos de suspeita de judaísmo ou heresia.

Os registros da Inquisição, muitos ainda em estudo, revelam o uso de métodos como a corda (suspensão por cordas), a água (simulação de afogamento) e o potro (estiramento do corpo), que causavam sofrimento físico e psicológico. Além disso, testemunhos de vítimas, como os preservados em relatos de conversos, descrevem um clima de medo e coerção.

Impactos Sociais e Culturais

A Inquisição Espanhola teve consequências profundas na sociedade ibérica. A intolerância religiosa e a obsessão pela limpeza de sangre criaram uma cultura de desconfiança e delação, fragmentando comunidades e reforçando divisões sociais.

Como observa Landes, a repressão cultural e intelectual contribuiu para o atraso da Espanha e de Portugal na Revolução Científica, enquanto países do norte da Europa, menos restritivos, avançavam em ciência e tecnologia.

A expulsão dos judeus em 1492 e a perseguição aos mouriscos enfraqueceram a economia, pois muitos eram artesãos, comerciantes e intelectuais.

Além disso, a Inquisição gerou um impacto psicológico duradouro. O medo de ser denunciado por vizinhos ou até familiares criou uma atmosfera de paranoia, enquanto os Autos de Fé reforçavam a mensagem de que qualquer desvio, por menor que fosse, poderia levar à punição.

A longo prazo, a Inquisição contribuiu para a estagnação cultural da Península Ibérica, enquanto a Europa setentrional avançava rumo à modernidade.

A "Lenda Negra" versus a "Lenda Branca"

A historiografia moderna continua dividida sobre a Inquisição Espanhola. A "lenda negra", alimentada por relatos sensacionalistas de cronistas protestantes, retratava a Inquisição como um tribunal bárbaro e sanguinário.

Historiadores como Kamen e Benassa buscam corrigir esses exageros, destacando que a Inquisição operava dentro de um contexto judicial da época, onde a tortura e as execuções eram práticas comuns em tribunais seculares e religiosos.

No entanto, a tentativa de desmistificar a "lenda negra" não deve levar à criação de uma "lenda branca", que ignore os abusos reais. Como Toby Green argumenta, é essencial reconhecer o sofrimento das vítimas sem distorcer a realidade histórica.

Conclusão

A Inquisição Espanhola, com sua mistura de fanatismo religioso, poder estatal e repressão social, permanece um dos capítulos mais sombrios da história europeia.

Sob a liderança de figuras como Tomás de Torquemada, o tribunal não apenas perseguiu supostos hereges, mas também moldou a sociedade ibérica, promovendo a intolerância e atrasando o progresso cultural e científico.

Embora revisões historiográficas tenham suavizado a imagem de um tribunal exclusivamente cruel, os milhares de registros e testemunhos pessoais atestam o impacto devastador da Inquisição, tanto para as vítimas quanto para os perseguidores.

Corrigir mitos não deve apagar a realidade de um sistema que, movido pelo zelo religioso e pela ganância, deixou cicatrizes profundas na história da Espanha e do mundo.

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