Em um
dia fatídico de 399 a.C., o filósofo Sócrates, uma das figuras mais influentes
da história do pensamento ocidental, apresentou-se diante de um tribunal
composto por 500 cidadãos atenienses.
Ele
enfrentava acusações graves: “recusar-se a reconhecer os deuses oficiais do
Estado” e “corromper a juventude de Atenas”. Em uma cidade ainda marcada pelas
cicatrizes da recente Guerra do Peloponeso e pela instabilidade política, essas
acusações não eram apenas pessoais, mas profundamente políticas, refletindo o
temor de que Sócrates representasse uma ameaça à ordem social e à democracia
ateniense.
O
julgamento, um marco na história da filosofia, durou cerca de seis horas, com
Sócrates defendendo-se com sua característica ironia e lucidez, enquanto seus
acusadores - Meleto, Ânito e Licon - apresentavam argumentos inflamados.
Após
intensos debates, os jurados depositaram seus votos em uma urna, escolhendo
entre “culpado” ou “inocente”. O veredicto foi apertado, mas devastador: 280
votos a favor da culpa contra 220 pela absolvição.
A etapa
seguinte do julgamento determinaria a pena. Os acusadores exigiam a morte,
enquanto Sócrates, com sua típica audácia, desafiou as convenções.
Em vez
de propor uma punição severa ou implorar clemência, ele sugeriu, com uma
mistura de sarcasmo e convicção, que o Estado deveria recompensá-lo com um
salário vitalício e jantares gratuitos, argumentando que seu trabalho
filosófico beneficiava Atenas.
Como
alternativa, propôs pagar uma multa irrisória, incompatível com a gravidade do
caso. Essa postura provocadora, relatada por Platão, seu discípulo e principal
cronista, apenas reforçou a percepção de muitos atenienses de que Sócrates era
um incômodo incorrigível.
O Contexto: Sócrates, a “Mosca” de Atenas
Sócrates
era uma figura polarizadora. Segundo Platão, o oráculo de Delfos declarara que
ninguém em Atenas era mais sábio que ele. Em vez de se vangloriar, Sócrates
interpretou isso como um chamado para expor a ignorância alheia, utilizando seu
método socrático - uma técnica de questionamento incisivo que desnudava
contradições e revelava a fragilidade das crenças de seus interlocutores.
Esse
hábito o tornou uma “mosca” incômoda, como ele próprio se descreveu, picando a
consciência adormecida de Atenas e desafiando a complacência intelectual de
seus cidadãos.
Além
disso, Sócrates era crítico da democracia ateniense, um sistema ainda jovem e
vulnerável, que ele considerava suscetível à manipulação por oradores
carismáticos e decisões impulsivas das massas.
Suas
ideias atraíam a ira de muitos, especialmente porque alguns de seus discípulos,
como Alcibíades e Crítias, estavam associados aos Trinta Tiranos, um regime
oligárquico que, em 404 a.C., derrubara brevemente a democracia ateniense,
instaurando um governo repressivo.
Embora
Sócrates não tivesse participado diretamente do regime, sua proximidade com
figuras controversas alimentava suspeitas de que suas ideias subversivas
poderiam inspirar novos golpes contra a polis.
A Sentença e a Execução
O júri,
pouco inclinado a tolerar a insolência de Sócrates, optou pela pena de morte.
Ele deveria ingerir uma taça de cicuta, um veneno letal extraído de uma planta
comum na região.
A
execução ocorreu em uma cela simples, sob os olhares de seus discípulos mais
próximos, como Críton, Fédon e Apolodoro, embora Platão, por motivos não
esclarecidos, estivesse ausente.
Fédon,
em seu relato registrado no diálogo Fédon de Platão, descreve os momentos
finais de Sócrates com uma mistura de reverência e melancolia. Após receber a
taça de cicuta, Sócrates caminhou calmamente pela cela até sentir as pernas
pesarem, conforme o veneno começava a agir.
Seguindo
as instruções do atendente, ele se deitou de costas. O executor, com gestos
metódicos, examinou seus pés e pernas, apertando-os com força para verificar a
sensibilidade.
Sócrates,
com serenidade, respondeu que não sentia nada. À medida que o frio e a rigidez
subiam por seu corpo, o veneno avançava inexoravelmente em direção ao coração.
Quando
o efeito do veneno alcançou sua cintura, Sócrates, que havia coberto o rosto
com um pano, descobriu a cabeça para pronunciar suas últimas palavras: “Críton,
devemos um galo a Asclépio. Não se esqueça de pagar essa dívida.”
Essas
palavras enigmáticas, interpretadas por alguns como uma expressão de gratidão
ao deus da cura por libertá-lo da vida terrena, ou talvez como uma última
ironia, ecoaram na cela silenciosa.
Pouco
depois, seu corpo estremeceu levemente. O executor examinou seus olhos, que já
não respondiam. Críton, com um gesto terno, fechou a boca e as pálpebras de seu
mestre. Assim, em 399 a.C., Sócrates, o pai da filosofia ocidental, deixou este
mundo.
O Legado de Sócrates
A morte
de Sócrates não foi apenas o fim de um homem, mas o início de um legado que
moldaria o pensamento ocidental. Sua execução expôs as tensões entre liberdade
individual e autoridade estatal, entre a busca pela verdade e o conformismo
social.
Seus
discípulos, especialmente Platão e, mais tarde, Aristóteles, transformariam
suas ideias em sistemas filosóficos que influenciariam séculos de debates
éticos, políticos e metafísicos.
O
julgamento e a morte de Sócrates também serviram como um alerta sobre os
perigos da intolerância ao dissenso. Em uma Atenas que se orgulhava de sua
democracia, a condenação de um pensador por suas ideias revelou as fragilidades
de um sistema que, embora inovador, ainda temia a crítica.
A
cicuta que silenciou Sócrates não apagou sua voz; ao contrário, ampliou-a,
transformando-o em um mártir da filosofia e um símbolo eterno da coragem
intelectual.
0 Comentários:
Postar um comentário