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quinta-feira, julho 03, 2025

A Sentença de Sócrates


 

Em um dia fatídico de 399 a.C., o filósofo Sócrates, uma das figuras mais influentes da história do pensamento ocidental, apresentou-se diante de um tribunal composto por 500 cidadãos atenienses.

Ele enfrentava acusações graves: “recusar-se a reconhecer os deuses oficiais do Estado” e “corromper a juventude de Atenas”. Em uma cidade ainda marcada pelas cicatrizes da recente Guerra do Peloponeso e pela instabilidade política, essas acusações não eram apenas pessoais, mas profundamente políticas, refletindo o temor de que Sócrates representasse uma ameaça à ordem social e à democracia ateniense.

O julgamento, um marco na história da filosofia, durou cerca de seis horas, com Sócrates defendendo-se com sua característica ironia e lucidez, enquanto seus acusadores - Meleto, Ânito e Licon - apresentavam argumentos inflamados.

Após intensos debates, os jurados depositaram seus votos em uma urna, escolhendo entre “culpado” ou “inocente”. O veredicto foi apertado, mas devastador: 280 votos a favor da culpa contra 220 pela absolvição.

A etapa seguinte do julgamento determinaria a pena. Os acusadores exigiam a morte, enquanto Sócrates, com sua típica audácia, desafiou as convenções.

Em vez de propor uma punição severa ou implorar clemência, ele sugeriu, com uma mistura de sarcasmo e convicção, que o Estado deveria recompensá-lo com um salário vitalício e jantares gratuitos, argumentando que seu trabalho filosófico beneficiava Atenas.

Como alternativa, propôs pagar uma multa irrisória, incompatível com a gravidade do caso. Essa postura provocadora, relatada por Platão, seu discípulo e principal cronista, apenas reforçou a percepção de muitos atenienses de que Sócrates era um incômodo incorrigível.

O Contexto: Sócrates, a “Mosca” de Atenas

Sócrates era uma figura polarizadora. Segundo Platão, o oráculo de Delfos declarara que ninguém em Atenas era mais sábio que ele. Em vez de se vangloriar, Sócrates interpretou isso como um chamado para expor a ignorância alheia, utilizando seu método socrático - uma técnica de questionamento incisivo que desnudava contradições e revelava a fragilidade das crenças de seus interlocutores.

Esse hábito o tornou uma “mosca” incômoda, como ele próprio se descreveu, picando a consciência adormecida de Atenas e desafiando a complacência intelectual de seus cidadãos.

Além disso, Sócrates era crítico da democracia ateniense, um sistema ainda jovem e vulnerável, que ele considerava suscetível à manipulação por oradores carismáticos e decisões impulsivas das massas.

Suas ideias atraíam a ira de muitos, especialmente porque alguns de seus discípulos, como Alcibíades e Crítias, estavam associados aos Trinta Tiranos, um regime oligárquico que, em 404 a.C., derrubara brevemente a democracia ateniense, instaurando um governo repressivo.

Embora Sócrates não tivesse participado diretamente do regime, sua proximidade com figuras controversas alimentava suspeitas de que suas ideias subversivas poderiam inspirar novos golpes contra a polis.

A Sentença e a Execução

O júri, pouco inclinado a tolerar a insolência de Sócrates, optou pela pena de morte. Ele deveria ingerir uma taça de cicuta, um veneno letal extraído de uma planta comum na região.

A execução ocorreu em uma cela simples, sob os olhares de seus discípulos mais próximos, como Críton, Fédon e Apolodoro, embora Platão, por motivos não esclarecidos, estivesse ausente.

Fédon, em seu relato registrado no diálogo Fédon de Platão, descreve os momentos finais de Sócrates com uma mistura de reverência e melancolia. Após receber a taça de cicuta, Sócrates caminhou calmamente pela cela até sentir as pernas pesarem, conforme o veneno começava a agir.

Seguindo as instruções do atendente, ele se deitou de costas. O executor, com gestos metódicos, examinou seus pés e pernas, apertando-os com força para verificar a sensibilidade.

Sócrates, com serenidade, respondeu que não sentia nada. À medida que o frio e a rigidez subiam por seu corpo, o veneno avançava inexoravelmente em direção ao coração.

Quando o efeito do veneno alcançou sua cintura, Sócrates, que havia coberto o rosto com um pano, descobriu a cabeça para pronunciar suas últimas palavras: “Críton, devemos um galo a Asclépio. Não se esqueça de pagar essa dívida.”

Essas palavras enigmáticas, interpretadas por alguns como uma expressão de gratidão ao deus da cura por libertá-lo da vida terrena, ou talvez como uma última ironia, ecoaram na cela silenciosa.

Pouco depois, seu corpo estremeceu levemente. O executor examinou seus olhos, que já não respondiam. Críton, com um gesto terno, fechou a boca e as pálpebras de seu mestre. Assim, em 399 a.C., Sócrates, o pai da filosofia ocidental, deixou este mundo.

O Legado de Sócrates

A morte de Sócrates não foi apenas o fim de um homem, mas o início de um legado que moldaria o pensamento ocidental. Sua execução expôs as tensões entre liberdade individual e autoridade estatal, entre a busca pela verdade e o conformismo social.

Seus discípulos, especialmente Platão e, mais tarde, Aristóteles, transformariam suas ideias em sistemas filosóficos que influenciariam séculos de debates éticos, políticos e metafísicos.

O julgamento e a morte de Sócrates também serviram como um alerta sobre os perigos da intolerância ao dissenso. Em uma Atenas que se orgulhava de sua democracia, a condenação de um pensador por suas ideias revelou as fragilidades de um sistema que, embora inovador, ainda temia a crítica.

A cicuta que silenciou Sócrates não apagou sua voz; ao contrário, ampliou-a, transformando-o em um mártir da filosofia e um símbolo eterno da coragem intelectual.

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