“Existe
também o estranho desencontro de ter o corpo num lugar e a alma em outro, de
estar lá ou de ainda não estar aqui.”
(Rosa
Lobato de Faria)
O
desencontro, esse estado sutil e inquietante, é como uma dança descompassada
entre o corpo e a alma. É quando o físico permanece ancorado a um lugar - uma
cadeira, uma cidade, uma rotina - enquanto a mente vagueia por territórios
intangíveis, distantes e inóspitos.
É estar
sentado à mesa de um café, com o aroma do expresso pairando no ar, mas ter o
coração perdido numa memória de infância, numa praia distante onde as ondas
sussurravam segredos.
Ou,
talvez, é caminhar pelas ruas apressadas de uma metrópole, com o corpo
obedecendo ao ritmo dos semáforos, enquanto a alma insiste em se demorar num
sonho ainda não realizado, num futuro que parece sempre escapar pelos dedos.
Esse
desencontro não é apenas geográfico ou temporal; é profundamente humano. Surge
nos momentos em que a vida nos obriga a estar presentes, mas algo em nós
resiste, como se recusasse a habitar o agora.
É o
estudante que, na sala de aula, fixa os olhos no quadro, mas sua mente está nas
estrelas, imaginando galáxias ou amores impossíveis. É a mãe que embala o filho
no colo, mas cuja alma está ancorada numa preocupação que a distância não
explica.
É o
viajante que cruza continentes, carrega malas e passaportes, mas deixa pedaços
de si em cada lugar que já chamou de lar. Por vezes, o desencontro se manifesta
em acontecimentos que nos arrancam do presente.
Uma
notícia inesperada, como a perda de alguém querido, pode fazer o corpo
continuar a cumprir seus afazeres - lavar a louça, responder e-mails, sorrir
por educação -, enquanto a alma se refugia na saudade, num tempo em que o mundo
parecia mais inteiro.
Ou, em
instantes de alegria súbita, como o reencontro com um velho amigo, o corpo pode
estar ali, abraçando, rindo, mas a alma já está projetando o vazio que virá
quando a despedida chegar.
Na
modernidade, esse desencontro parece se intensificar. Vivemos num mundo que
exige presença constante - notificações piscando, prazos apertados, telas que
nos puxam para mil direções.
Ainda,
paradoxalmente, é fácil se perder em pensamentos, memórias ou anseios. A tecnologia,
que nos conecta ao outro lado do planeta em segundos, também nos desconecta de
nós mesmos.
Quantas
vezes nos pegamos olhando para uma tela, mas pensando em outro lugar? Quantas
vezes o corpo está no escritório, mas a alma está numa montanha, num livro não
lido, numa conversa nunca terminada?
Os
desencontros também se manifestam em momentos coletivos, em acontecimentos que
marcam uma sociedade. Em 2020, por exemplo, a pandemia confinou corpos a casas
e apartamentos, mas as almas viajavam para além das paredes - para o medo do
futuro, para a saudade de abraços, para a esperança de dias melhores.
Ou, em
instantes de celebração, como a vitória de um time ou a conquista de um
direito, o corpo vibra na multidão, mas a alma pode estar refletindo sobre o que
foi perdido no caminho até ali.
Esse
desencontro, porém, não é apenas um vazio. Ele carrega em si a possibilidade de
criação. É no espaço entre o corpo e a alma que nascem as poesias, as músicas,
as revoluções.
É nesse
hiato que a imaginação floresce, que o desejo de mudar o mundo ganha forma.
Talvez o desencontro seja, também, um convite: para que o corpo e a alma se
reencontrem, para que o presente seja habitado com mais intenção, ou para que,
ao menos, possamos aprender a dançar com o descompasso, transformando-o em algo
que nos mova adiante.
0 Comentários:
Postar um comentário