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quinta-feira, agosto 08, 2024

Desencontro



“Existe também o estranho desencontro de ter o corpo num lugar e a alma em outro, de estar lá ou de ainda não estar aqui.”

(Rosa Lobato de Faria)

O desencontro, esse estado sutil e inquietante, é como uma dança descompassada entre o corpo e a alma. É quando o físico permanece ancorado a um lugar - uma cadeira, uma cidade, uma rotina - enquanto a mente vagueia por territórios intangíveis, distantes e inóspitos.

É estar sentado à mesa de um café, com o aroma do expresso pairando no ar, mas ter o coração perdido numa memória de infância, numa praia distante onde as ondas sussurravam segredos.

Ou, talvez, é caminhar pelas ruas apressadas de uma metrópole, com o corpo obedecendo ao ritmo dos semáforos, enquanto a alma insiste em se demorar num sonho ainda não realizado, num futuro que parece sempre escapar pelos dedos.

Esse desencontro não é apenas geográfico ou temporal; é profundamente humano. Surge nos momentos em que a vida nos obriga a estar presentes, mas algo em nós resiste, como se recusasse a habitar o agora.

É o estudante que, na sala de aula, fixa os olhos no quadro, mas sua mente está nas estrelas, imaginando galáxias ou amores impossíveis. É a mãe que embala o filho no colo, mas cuja alma está ancorada numa preocupação que a distância não explica.

É o viajante que cruza continentes, carrega malas e passaportes, mas deixa pedaços de si em cada lugar que já chamou de lar. Por vezes, o desencontro se manifesta em acontecimentos que nos arrancam do presente.

Uma notícia inesperada, como a perda de alguém querido, pode fazer o corpo continuar a cumprir seus afazeres - lavar a louça, responder e-mails, sorrir por educação -, enquanto a alma se refugia na saudade, num tempo em que o mundo parecia mais inteiro.

Ou, em instantes de alegria súbita, como o reencontro com um velho amigo, o corpo pode estar ali, abraçando, rindo, mas a alma já está projetando o vazio que virá quando a despedida chegar.

Na modernidade, esse desencontro parece se intensificar. Vivemos num mundo que exige presença constante - notificações piscando, prazos apertados, telas que nos puxam para mil direções.

Ainda, paradoxalmente, é fácil se perder em pensamentos, memórias ou anseios. A tecnologia, que nos conecta ao outro lado do planeta em segundos, também nos desconecta de nós mesmos.

Quantas vezes nos pegamos olhando para uma tela, mas pensando em outro lugar? Quantas vezes o corpo está no escritório, mas a alma está numa montanha, num livro não lido, numa conversa nunca terminada?

Os desencontros também se manifestam em momentos coletivos, em acontecimentos que marcam uma sociedade. Em 2020, por exemplo, a pandemia confinou corpos a casas e apartamentos, mas as almas viajavam para além das paredes - para o medo do futuro, para a saudade de abraços, para a esperança de dias melhores.

Ou, em instantes de celebração, como a vitória de um time ou a conquista de um direito, o corpo vibra na multidão, mas a alma pode estar refletindo sobre o que foi perdido no caminho até ali.

Esse desencontro, porém, não é apenas um vazio. Ele carrega em si a possibilidade de criação. É no espaço entre o corpo e a alma que nascem as poesias, as músicas, as revoluções.

É nesse hiato que a imaginação floresce, que o desejo de mudar o mundo ganha forma. Talvez o desencontro seja, também, um convite: para que o corpo e a alma se reencontrem, para que o presente seja habitado com mais intenção, ou para que, ao menos, possamos aprender a dançar com o descompasso, transformando-o em algo que nos mova adiante.


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