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sábado, agosto 30, 2025

Auto de fé na Inquisição era um ritual de penitência pública



Os Autos de Fé na Inquisição: Rituais de Punição e Espetáculo Público

Os autos de fé eram cerimônias públicas organizadas pelas Inquisições, especialmente a Espanhola (estabelecida em 1478), a Portuguesa (1536-1821), a Mexicana e outras, como as que operaram nas colônias da América Latina, incluindo o Brasil, o Peru e Goa.

Esses rituais tinham como objetivo principal da penitência pública de hereges, apóstatas ou outros acusados de crimes contra a fé católica, culminando na execução das sentenças pelas autoridades civis.

Mais do que um julgamento, o auto de fé era um espetáculo cuidadosamente orquestrado, que reforçava o poder da Igreja Católica e do Estado, ao mesmo tempo em que servia como advertência à população.

O Processo Inquisitorial e a Impossibilidade de Absolvição

Os acusados enfrentavam processos inquisitoriais marcados por extrema parcialidade. Após investigações que frequentemente envolviam denúncias anônimas, interrogatórios e, em muitos casos, tortura, as chances de absolvição eram praticamente nulas.

Mesmo aqueles que escapavam da pena capital não saíam impunes, sendo submetidos a punições como o uso do sambenito (uma veste penitencial que marcava publicamente o condenado como herege), prisão prolongada ou exílio. Os réus eram classificados em diferentes categorias:

Reconciliados: aqueles que renunciavam publicamente à heresia, confessando seus erros e aceitando a autoridade da Igreja. Estes recebiam penas mais leves, como multas, penitências espirituais ou o uso do sambenito por um período determinado.

Negativos: indivíduos que se recusavam a confessar ou a renunciar às suas crenças, considerados obstinados. Geralmente, eram condenados à morte, seja pelo garrote (estrangulamento) ou pela fogueira.

Diminutos: aqueles cuja confissão era considerada incompleta ou insatisfatória, o que também podia levar a penas graves, como prisão perpétua ou execução.

Quando a Inquisição "relaxava" um condenado ao braço secular, isso significava, na prática, entregá-lo às autoridades civis para execução. A Igreja, formalmente, evitava derramar sangue, delegando a aplicação da pena de morte ao poder secular.

Assim, os condenados que persistiam na heresia eram frequentemente queimados vivos, enquanto aqueles que demonstravam arrependimento poderiam ser garrotados antes de terem seus corpos queimados, em um gesto de "misericórdia".

A Cenografia dos Autos de Fé

Os autos de fé eram realizados em praças públicas, como o Rossio ou o Terreiro do Paço em Lisboa, e atraíam grandes multidões, incluindo autoridades eclesiásticas, nobres, representantes do poder civil e a população em geral.

Eram cerimônias carregadas de simbolismo, com uma mise-en-scène que combinava solenidade religiosa, demonstração de poder e espetáculo popular. Os condenados desfilavam em procissão, muitas vezes vestindo sambenitos decorados com símbolos que indicavam a gravidade de seus crimes.

Aqueles destinados à fogueira usavam sambenitos com chamas pintadas, enquanto os reconciliados exibiam cruzes. Esses eventos eram dispendiosos e cuidadosamente planejados, funcionando como uma exibição do poderio inquisitorial.

Para o povo, os autos de fé tinham um caráter ambíguo: eram ao mesmo tempo uma celebração religiosa, um espetáculo de punição e uma oportunidade de confraternização.

Muitas pessoas levavam alimentos e bebidas, tratando o evento como um piquenique macabro, o que reflete a banalização da violência na sociedade da época. Essa indiferença à crueldade não era exclusiva da Idade Moderna, mas os autos de fé amplificavam essa característica ao transformar a punição em entretenimento público.

Origens e Contexto Histórico

O primeiro auto de fé registrado ocorreu em Paris, em 1242, durante o reinado de Luís IX, no contexto da repressão aos cátaros, um grupo considerado herético pela Igreja. Contudo, foi com a Inquisição Espanhola, estabelecida pelos Reis Católicos em 1478, que os autos de fé ganharam notoriedade.

Na Península Ibérica, os alvos iniciais foram sobretudo os conversos (judeus e muçulmanos convertidos ao cristianismo, suspeitos de praticar suas antigas religiões em segredo).

Mais tarde, a Inquisição passou a perseguir protestantes, feiticeiros, bigamistas e outros considerados desvios da ortodoxia católica. A Inquisição Portuguesa, instituída em 1536 sob D. João III, seguiu um modelo semelhante, com foco inicial nos cristãos-novos (judeus convertidos).

O primeiro auto de fé em Portugal ocorreu em 20 de setembro de 1540, na praça do Rossio, em Lisboa. No Porto, apenas um auto de fé foi registrado, refletindo a concentração das atividades inquisitoriais na capital.

A Inquisição Portuguesa foi oficialmente extinta em 1821, mas já havia perdido força no final do século XVIII, especialmente sob o governo do Marquês de Pombal, que limitou suas atividades.

Nas colônias ibéricas, os autos de fé também marcaram presença. No México, no Peru e no Brasil, a Inquisição perseguiu indígenas, africanos escravizados e colonos acusados de práticas heterodoxas.

Bernal Díaz del Castillo, cronista da conquista do México, descreveu autos de fé nas Américas, destacando a violência contra indígenas que resistiam à conversão forçada.

Em Goa, colônia portuguesa na Índia, os autos de fé foram particularmente cruéis contra hindus, muçulmanos e cristãos-novos. O último auto de fé documentado ocorreu em Valência, Espanha, em 26 de julho de 1826, com a execução de Cayetano Ripoll, um professor acusado de deísmo.

Após um julgamento de dois anos, Ripoll foi enforcado, declarando em suas últimas palavras: "Morro reconciliado com Deus e com o Homem". Sua execução marcou o fim simbólico da Inquisição Espanhola, já enfraquecida pelo avanço do iluminismo e pelas reformas liberais.

Impacto Cultural e Representações na Literatura

Os autos de fé deixaram marcas profundas na cultura e na literatura. Em Memorial do Convento, de José Saramago, ambientado no reinado de D. João V, a personagem Blimunda presencia a mãe sendo julgada e açoitada em um auto de fé no Rossio, ilustrando o terror e a humilhação impostos pela Inquisição.

Em Goa ou o Guardião da Aurora, de Richard Zimler, o narrador e outros personagens sofrem as agruras de um auto de fé em Goa, destacando a brutalidade contra minorias religiosas.

Já em Cândido, ou O Otimismo, de Voltaire, o auto de fé é retratado com ironia, quando os protagonistas, recém-chegados a Lisboa após o terremoto de 1755, são submetidos a um ritual absurdo, satirizando o fanatismo religioso.

Legado e Reflexão

Os autos de fé representam um dos capítulos mais sombrios da história do cristianismo, evidenciando como a intolerância religiosa e o poder político se entrelaçaram para justificar a violência.

A Inquisição, ao promover esses rituais, não apenas punia indivíduos, mas buscava controlar as consciências, reforçando a hegemonia católica em um mundo marcado por tensões religiosas e culturais.

A indiferença do público, que transformava essas execuções em entretenimento, reflete a normalização da violência em contextos históricos onde a fé era usada como instrumento de coerção.

Hoje, os autos de fé são lembrados como símbolos de intolerância e abuso de poder, mas também como lembretes da necessidade de proteger a liberdade de crença e expressão.

Historiadores continuam a estudar seus impactos, utilizando fontes como os registros inquisitoriais e as crônicas da época, para compreender como essas práticas moldaram as sociedades ibéricas e coloniais.

A memória dos autos de fé, preservada em arquivos e na literatura, serve como um alerta contra o fanatismo e a violência institucionalizada.

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