Os Autos de Fé na Inquisição: Rituais de Punição e Espetáculo Público
Os
autos de fé eram cerimônias públicas organizadas pelas Inquisições,
especialmente a Espanhola (estabelecida em 1478), a Portuguesa (1536-1821), a
Mexicana e outras, como as que operaram nas colônias da América Latina,
incluindo o Brasil, o Peru e Goa.
Esses
rituais tinham como objetivo principal da penitência pública de hereges,
apóstatas ou outros acusados de crimes contra a fé católica, culminando na
execução das sentenças pelas autoridades civis.
Mais do
que um julgamento, o auto de fé era um espetáculo cuidadosamente orquestrado, que
reforçava o poder da Igreja Católica e do Estado, ao mesmo tempo em que servia
como advertência à população.
O Processo Inquisitorial e a Impossibilidade de Absolvição
Os
acusados enfrentavam processos inquisitoriais marcados por extrema
parcialidade. Após investigações que frequentemente envolviam denúncias
anônimas, interrogatórios e, em muitos casos, tortura, as chances de absolvição
eram praticamente nulas.
Mesmo
aqueles que escapavam da pena capital não saíam impunes, sendo submetidos a
punições como o uso do sambenito (uma veste penitencial que marcava
publicamente o condenado como herege), prisão prolongada ou exílio. Os réus
eram classificados em diferentes categorias:
Reconciliados:
aqueles que renunciavam publicamente à heresia, confessando seus erros e
aceitando a autoridade da Igreja. Estes recebiam penas mais leves, como multas,
penitências espirituais ou o uso do sambenito por um período determinado.
Negativos:
indivíduos que se recusavam a confessar ou a renunciar às suas crenças,
considerados obstinados. Geralmente, eram condenados à morte, seja pelo garrote
(estrangulamento) ou pela fogueira.
Diminutos:
aqueles cuja confissão era considerada incompleta ou insatisfatória, o que
também podia levar a penas graves, como prisão perpétua ou execução.
Quando
a Inquisição "relaxava" um condenado ao braço secular, isso
significava, na prática, entregá-lo às autoridades civis para execução. A
Igreja, formalmente, evitava derramar sangue, delegando a aplicação da pena de
morte ao poder secular.
Assim,
os condenados que persistiam na heresia eram frequentemente queimados vivos,
enquanto aqueles que demonstravam arrependimento poderiam ser garrotados antes
de terem seus corpos queimados, em um gesto de "misericórdia".
A Cenografia dos Autos de Fé
Os
autos de fé eram realizados em praças públicas, como o Rossio ou o Terreiro do
Paço em Lisboa, e atraíam grandes multidões, incluindo autoridades
eclesiásticas, nobres, representantes do poder civil e a população em geral.
Eram
cerimônias carregadas de simbolismo, com uma mise-en-scène que combinava
solenidade religiosa, demonstração de poder e espetáculo popular. Os condenados
desfilavam em procissão, muitas vezes vestindo sambenitos decorados com
símbolos que indicavam a gravidade de seus crimes.
Aqueles
destinados à fogueira usavam sambenitos com chamas pintadas, enquanto os
reconciliados exibiam cruzes. Esses eventos eram dispendiosos e cuidadosamente
planejados, funcionando como uma exibição do poderio inquisitorial.
Para o
povo, os autos de fé tinham um caráter ambíguo: eram ao mesmo tempo uma
celebração religiosa, um espetáculo de punição e uma oportunidade de
confraternização.
Muitas
pessoas levavam alimentos e bebidas, tratando o evento como um piquenique
macabro, o que reflete a banalização da violência na sociedade da época. Essa
indiferença à crueldade não era exclusiva da Idade Moderna, mas os autos de fé
amplificavam essa característica ao transformar a punição em entretenimento
público.
Origens e Contexto Histórico
O
primeiro auto de fé registrado ocorreu em Paris, em 1242, durante o reinado de
Luís IX, no contexto da repressão aos cátaros, um grupo considerado herético
pela Igreja. Contudo, foi com a Inquisição Espanhola, estabelecida pelos Reis
Católicos em 1478, que os autos de fé ganharam notoriedade.
Na
Península Ibérica, os alvos iniciais foram sobretudo os conversos (judeus e
muçulmanos convertidos ao cristianismo, suspeitos de praticar suas antigas
religiões em segredo).
Mais
tarde, a Inquisição passou a perseguir protestantes, feiticeiros, bigamistas e
outros considerados desvios da ortodoxia católica. A Inquisição Portuguesa,
instituída em 1536 sob D. João III, seguiu um modelo semelhante, com foco
inicial nos cristãos-novos (judeus convertidos).
O
primeiro auto de fé em Portugal ocorreu em 20 de setembro de 1540, na praça do
Rossio, em Lisboa. No Porto, apenas um auto de fé foi registrado, refletindo a
concentração das atividades inquisitoriais na capital.
A
Inquisição Portuguesa foi oficialmente extinta em 1821, mas já havia perdido
força no final do século XVIII, especialmente sob o governo do Marquês de
Pombal, que limitou suas atividades.
Nas
colônias ibéricas, os autos de fé também marcaram presença. No México, no Peru
e no Brasil, a Inquisição perseguiu indígenas, africanos escravizados e colonos
acusados de práticas heterodoxas.
Bernal
Díaz del Castillo, cronista da conquista do México, descreveu autos de fé nas
Américas, destacando a violência contra indígenas que resistiam à conversão
forçada.
Em Goa,
colônia portuguesa na Índia, os autos de fé foram particularmente cruéis contra
hindus, muçulmanos e cristãos-novos. O último auto de fé documentado ocorreu em
Valência, Espanha, em 26 de julho de 1826, com a execução de Cayetano Ripoll,
um professor acusado de deísmo.
Após um
julgamento de dois anos, Ripoll foi enforcado, declarando em suas últimas
palavras: "Morro reconciliado com Deus e com o Homem". Sua execução
marcou o fim simbólico da Inquisição Espanhola, já enfraquecida pelo avanço do
iluminismo e pelas reformas liberais.
Impacto Cultural e Representações na Literatura
Os
autos de fé deixaram marcas profundas na cultura e na literatura. Em Memorial
do Convento, de José Saramago, ambientado no reinado de D. João V, a personagem
Blimunda presencia a mãe sendo julgada e açoitada em um auto de fé no Rossio,
ilustrando o terror e a humilhação impostos pela Inquisição.
Em Goa
ou o Guardião da Aurora, de Richard Zimler, o narrador e outros personagens
sofrem as agruras de um auto de fé em Goa, destacando a brutalidade contra
minorias religiosas.
Já em Cândido,
ou O Otimismo, de Voltaire, o auto de fé é retratado com ironia, quando os
protagonistas, recém-chegados a Lisboa após o terremoto de 1755, são submetidos
a um ritual absurdo, satirizando o fanatismo religioso.
Legado e Reflexão
Os
autos de fé representam um dos capítulos mais sombrios da história do
cristianismo, evidenciando como a intolerância religiosa e o poder político se
entrelaçaram para justificar a violência.
A
Inquisição, ao promover esses rituais, não apenas punia indivíduos, mas buscava
controlar as consciências, reforçando a hegemonia católica em um mundo marcado
por tensões religiosas e culturais.
A
indiferença do público, que transformava essas execuções em entretenimento,
reflete a normalização da violência em contextos históricos onde a fé era usada
como instrumento de coerção.
Hoje,
os autos de fé são lembrados como símbolos de intolerância e abuso de poder,
mas também como lembretes da necessidade de proteger a liberdade de crença e
expressão.
Historiadores
continuam a estudar seus impactos, utilizando fontes como os registros
inquisitoriais e as crônicas da época, para compreender como essas práticas
moldaram as sociedades ibéricas e coloniais.
A
memória dos autos de fé, preservada em arquivos e na literatura, serve como um
alerta contra o fanatismo e a violência institucionalizada.
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