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quinta-feira, julho 10, 2025

Lou Andreas-Salomé: a mulher que nenhum homem conteve


 

Numa era em que as mulheres eram moldadas para o silêncio, para serem sombras discretas de homens ou enfeites em salões, nasceu uma que recusou o molde. Não pediu licença para existir, para pensar, para amar ou para incendiar o mundo com suas ideias.

Lou Andreas-Salomé.

Um nome que ressoa como trovão. Um corpo de mulher. Uma alma de furacão. Ela não foi musa - musas são frágeis, idealizadas, presas em pedestais.

Lou era o próprio incêndio, a chama que consumia convenções e iluminava o caminho para si mesma. Enquanto a Europa do século XIX erguia altares a homens de grandes nomes, Lou escrevia com a própria alma, dormia com a liberdade, desafiava os gigantes intelectuais - e saía de cada embate maior do que entrara.

Nietzsche, Rilke, Freud: os gigantes que a encontraram

Friedrich Nietzsche, o filósofo que queria dinamitar os alicerces da moral, encontrou em Lou algo que o desarmou: uma mulher que não se curvava, nem a ele, nem a seus abismos.

Ele a amou, implorou por ela, viu nela a encarnação de sua “Zaratustra” - uma força indomável, um espírito que dançava sobre o caos. Mas Lou não se deixou possuir.

Quando Nietzsche caiu na loucura, o nome dela ainda ardia em seus manuscritos, como um eco de algo que ele nunca conseguiu capturar. Rainer Maria Rilke, o jovem poeta de alma frágil, encontrou em Lou não apenas uma amante, mas uma mestra.

Com ela, aprendeu mais que o idioma russo; aprendeu a mergulhar no abismo da beleza, a escrever com as feridas abertas, a transformar dor em poesia. Lou foi a mulher que o fez poeta - e nunca permitiu que ele esquecesse disso.

Anos depois, mesmo separados, Rilke ainda escrevia cartas a ela, como quem presta tributo a uma deusa que o moldou. Sigmund Freud, o pai da psicanálise, viu em Lou uma igual. Não uma discípula subserviente, mas uma mente brilhante que o desafiava.

Ele a ouviu, a respeitou, e juntos exploraram os mistérios do inconsciente. Lou tornou-se psicanalista, trazendo para a prática sua visão única sobre o desejo, a liberdade e a complexidade da alma humana.

Uma vida sem amarras

Lou não orbitava ninguém. Era o centro de sua própria constelação, o começo de suas próprias revoluções. Falou de desejo quando isso era tabu, quando mulheres eram condenadas por ousarem sentir.

Amou homens e ideias com a mesma voracidade, sem jamais se prender a um ou a outro. Escolheu um casamento aberto com Carl Andreas, um orientalista, numa época em que o mundo trancava mulheres em jaulas de boas maneiras e fidelidade cega.

Esse casamento, mais um pacto de liberdade que uma união tradicional, permitiu que ela continuasse a viver segundo suas próprias regras. Como escritora, filósofa e psicanalista, Lou deixou um legado que desafia categorizações.

Seus ensaios sobre o amor, a sexualidade e a religião - como em O Erotismo e Reflexões sobre o Problema do Amor - eram ousados, quase subversivos, numa sociedade que preferia mulheres caladas.

Seus romances, como Fenitschka e Desvio, exploravam a psique feminina com uma profundidade que poucos ousavam. Como pensadora, ela não apenas dialogava com as grandes mentes de sua época, mas as provocava, as transformava.

O contexto histórico e os últimos anos

Nascida em 1861 em São Petersburgo, na Rússia, numa família de origem alemã, Lou cresceu em um mundo em transformação, entre o colapso dos velhos impérios e o nascimento de ideias revolucionárias.

Sua juventude foi marcada por uma curiosidade insaciável e por encontros intelectuais que moldaram sua trajetória. Ela viajou pela Europa, frequentou círculos boêmios e acadêmicos, e construiu uma rede de relações que incluía nomes como Tolstoy, Wagner.

Quando o fascismo bateu à porta da Europa, Lou já era uma figura incômoda para o regime totalitário. Sua independência, sua escrita provocadora e sua recusa em se alinhar a qualquer dogma a tornavam em rota de colisão com a repressão.

Em 1937, aos 75 anos, ela morreu em Göttingen, na Alemanha, poucos dias antes que a Gestapo emitisse uma ordem de prisão contra ela. Sua morte, em 5 de fevereiro, foi quase um último ato de desafio: Lou partiu antes que a pudessem deter.

Lou Andreas-Salomé: a mulher que nenhum homem conteve

O legado de Lou

Lou Andreas-Salomé não cabia em dogmas. Não se encaixava em camas estreitas, em rótulos frágeis ou em correntes forjadas pelo patriarcado. Ela foi uma mulher que transborda ainda hoje, um século depois, desafiando-nos a repensar o que significa ser livre.

Seu legado não é apenas o que escreveu ou quem amou, mas o que representou: a ousadia de ser inteira num mundo que exigia metades. Como escritora, Lou deixou uma obra que pulsa com vida.

Seus ensaios, como O Erotismo e Reflexões sobre o Problema do Amor, desbravaram territórios proibidos, explorando o desejo e a sexualidade feminina com uma coragem que escandalizava e fascinava.

Seus romances, como Fenitschka e Desvio, mergulhavam na psique das mulheres, revelando suas contradições, anseios e forças com uma profundidade que antecipava as grandes vozes feministas do século XX.

Sua escrita não era apenas literária; era um ato de insubordinação, um grito de autonomia numa sociedade que silenciava vozes como a dela. Como psicanalista, Lou trouxe para o divã uma perspectiva única. Influenciada por Freud, mas nunca submissa a ele, ela explorou o inconsciente com a sensibilidade de quem entendia o amor, a dor e a liberdade.

Seus estudos sobre narcisismo e a relação entre criatividade e psique abriram novos caminhos na psicanálise, enquanto sua prática clínica era marcada por uma empatia que transcendia os rigores acadêmicos.

Lou não apenas analisava; ela conectava, transformava. Como filósofa, Lou desafiou as ideias de seu tempo. Sua amizade com Nietzsche a colocou no centro de debates sobre moral, religião e o “super-homem”, mas ela nunca se contentou em ecoar o pensamento alheio.

Em textos como Quando Nietzsche Chorou, ela refletiu sobre a fragilidade humana e a busca por sentido, sempre com um olhar que misturava intuição e rigor. Sua filosofia não era abstrata; era vivida, encarnada em cada escolha que fazia.

Uma vida contra o fascismo e a repressão

Nos anos finais de sua vida, Lou enfrentou o avanço do fascismo na Europa. Vivendo em Göttingen, na Alemanha, ela testemunhou a ascensão do nazismo e a destruição da liberdade intelectual que tanto prezava.

Seus escritos, com sua celebração da individualidade e da liberdade, eram uma afronta ao totalitarismo. Em 1937, quando a Gestapo confiscou sua biblioteca e planejava sua prisão, Lou já estava partindo.

Sua morte, em 5 de fevereiro, aos 75 anos, foi quase um ato final de resistência: ela escapou das garras da opressão, como escapara de todas as outras amarras ao longo da vida.

A mulher que inspirou o futuro

Lou Andreas-Salomé não foi apenas uma figura de seu tempo; ela foi uma precursora. Sua vida abriu portas para as mulheres que vieram depois, aquelas que ousaram pensar, amar e viver sem pedir permissão.

Ela influenciou o feminismo, ainda que nunca se rotulasse como feminista, ao mostrar que uma mulher podia ser intelectual, sensual, independente e poderosa sem se curvar às expectativas alheias.

Sua amizade com figuras como a escritora Ellen Key e sua correspondência com outras mulheres intelectuais da época mostram que Lou não caminhava sozinha; ela inspirava redes de pensamento e resistência. Seu impacto também se estende à literatura e à arte.

Rilke, que dedicou a ela algumas de suas mais belas linhas, é apenas um exemplo de como Lou moldava aqueles que cruzavam seu caminho. Sua influência pode ser sentida nas obras de autores que, direta ou indiretamente, beberam de sua visão sobre a beleza, o desejo e a existência.

Até hoje, ela é tema de biografias, romances e filmes, como o longa Lou Andreas-Salomé: The Audacity to be Free (2016), que tenta capturar sua essência indomável.

Um furacão que ainda sopra

Lou caminhou sozinha, sim - mas com o passo firme de quem sabe o próprio valor. Não era solitária; era soberana. Amou sem se prender, pensou sem se limitar, viveu sem se render.

Em cada linha que escreveu, em cada homem que desafiou, em cada ideia que defendeu, ela deixou claro: a liberdade não é dada, é conquistada. Hoje, num mundo que ainda luta para reconhecer a potência das mulheres, Lou Andreas-Salomé permanece como um farol.

Ela nos lembra que ser livre é um ato de coragem, que amar é uma escolha, que pensar é uma revolução. Ela foi a mulher que transbordou todos os homens, todas as épocas, todas as jaulas. E seu furacão ainda sopra, inquietando, inspirando, libertando.

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