O tempo que pertence à morte
Nisto
erramos: em imaginar a morte como um evento distante, um marco que nos aguarda
no horizonte do futuro, quando, na verdade, grande parte dela já se infiltrou
em nossas vidas.
Cada
hora que deixamos para trás, cada dia que se esvai, já pertence ao domínio da
morte. O passado, que julgamos nosso, é, em silêncio, reclamado por ela.
Enganamo-nos
ao crer que a morte é apenas o último suspiro, o instante final. Ela caminha
conosco desde o primeiro choro, tecendo sua presença em cada escolha, em cada
despedida, em cada momento que desliza de nossas mãos.
Quando
olhamos para trás, vemos não apenas a vida que vivemos, mas também o que já
entregamos à eternidade: os dias de juventude que se foram, as palavras não
ditas, os sonhos que adiamos. Tudo isso, a morte já guarda.
Lembro-me
de uma tarde, anos atrás, em que o sol dourava os campos e o riso de um amigo
ecoava como se o tempo fosse infinito. Hoje, aquele amigo não está mais aqui, e
aquela tarde, tão vívida em minha memória, pertence agora ao reino da morte.
Não
porque foi triste, mas porque é passado - e o passado é o território onde a
morte reina soberana. Quantas vezes, sem perceber, entregamos à morte nossos
instantes de descuido, nossas horas gastas em rancores ou em temores do que
ainda não veio?
E, no
entanto, está verdade não deve nos paralisar. Compreender que a morte
reivindica cada hora passada é também um convite para viver com mais plenitude
o presente.
Cada
momento que temos é uma oportunidade de subtrair algo ao domínio da morte,
enchendo-o de sentido, de amor, de coragem. Pois, se o passado é dela, o agora
é nosso - e é no agora que podemos construir algo que resista, mesmo que apenas
na memória dos que ficam.
Caminho
por uma cidade antiga, onde as pedras gastas das ruas contam histórias de
gerações que vieram e se foram. Cada passo meu é ao mesmo tempo um ato de vida
e uma entrega ao tempo que passa.
Vejo
uma criança correndo, alheia à finitude, e um ancião que observa o mundo com
olhos que já viram muito. Ambos, sem saber, compartilham o mesmo destino: o de
verem suas horas, uma a uma, serem acolhidas pela morte.
E,
ainda assim, há beleza nisso - na impermanência que nos faz humanos, na
urgência que nos empurra a criar, a amar, a ser.
Se
erramos ao ver a morte apenas à frente, podemos corrigir nosso olhar. Que
vejamos a morte não como inimiga, mas como companheira silenciosa, que nos
lembra de não desperdiçar o tempo que nos resta.
Que cada dia seja uma pequena vitória contra o esquecimento, um instante roubado à eternidade para ser vivido com verdade.
Pois, embora a morte reivindique o
passado, é no presente que escrevemos o que ela um dia levará - e é nossa
tarefa fazer com que esse legado valha a pena.
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