O Assassinato de Abel por Caim à Luz do Pensamento de Friedrich Nietzsche
A história de Caim e Abel aparece no Livro do
Gênesis (capítulo 4) da Bíblia hebraica, embora tenha paralelos em mitos mesopotâmicos
mais antigos.
Trata-se, porém, de um dos relatos mais
profundos e inquietantes da tradição judaico-cristã, e Friedrich Nietzsche -
que dedicou boa parte de sua obra a desconstruir a moral judaico-cristã - viu
nela um símbolo poderoso da luta entre dois tipos fundamentais de ser humano.
Caim, o homem dionisíaco e livre
Para Nietzsche, o drama de Caim e Abel não é
primariamente uma questão de “pecado original” ou de desobediência, mas da
tensão entre dois modos de existência: o homem ressentido, reativo e escravo
versus o homem soberano, afirmativo e criador.
Abel representa o tipo “escravo” por
excelência: o homem piedoso, obediente, que oferece o que acha que Deus quer
ouvir e espera recompensa por sua submissão.
Sua oferta é aceita porque ele já se colocou
na posição de servo que antecipa o desejo do senhor. Abel é o protótipo do
“rebanho” nietzschiano: vive para ser aprovado, para ser o “bom filho”, o “bom
crente”.
Caim, ao contrário, é o homem forte que se
rebela contra a humilhação arbitrária. Sua oferta (os frutos da terra, o
trabalho duro do agricultor) é rejeitada sem explicação clara.
Deus simplesmente “olha com agrado” para Abel
e não para Caim (Gn 4:4-5). Essa preferência divina sem critério racional é,
para Nietzsche, o modelo da moral do ressentimento: o fraco (Abel) é premiado
exatamente por ser fraco e submisso; o forte (Caim) é punido por sua
independência.
O assassinato de Abel pode ser lido,
portanto, como o primeiro grande ato de revolta contra a moral de escravo que
viria a dominar o Ocidente por milênios. Caim mata o “bom menino”, o favorito
de Deus, o símbolo da obediência cega.
Ao fazê-lo, ele diz “não” ao valor supremo do
rebanho: a humildade, a resignação, a aceitação passiva do julgamento alheio. Nietzsche
escreve em A Genealogia da Moral: “Os escravos revoltam-se inventando a ‘culpa’
e o ‘pecado’ para vingar-se dos fortes. Mas os fortes, quando se revoltam,
fazem-no com a espada.”
Caim é esse forte que usa a espada. Ele não
pede perdão (note-se que nunca se arrepende no texto bíblico); ele teme apenas
a vingança dos outros. Sua resposta a Deus - “Acaso sou eu o guarda do meu
irmão?” (Gn 4:9) - é uma das frases mais nietzschianas da Bíblia: recusa da
responsabilidade moral imposta de fora, recusa do papel de pastor do rebanho.
A marca de Caim e o eterno retorno do forte
Curiosamente, Deus não mata Caim. Coloca nele
um sinal e promete vingança sétupla contra quem o tocar. Nietzsche lê nisso um
reconhecimento involuntário da força de Caim: até o Deus judaico-cristão teme o
homem que ousou dizer não.
A “marca de Caim” torna-se, na interpretação
nietzschiana, o estigma do homem superior - aquele que carrega o peso de sua
liberdade e é odiado pelo rebanho exatamente por ser livre.
Caim funda a primeira cidade (Enoque, nome de
seu filho). O assassino de Abel torna-se o fundador da civilização. Para
Nietzsche, isso é profundamente simbólico: a cultura, a técnica, a arte, a
política - tudo nasce do excesso de força do homem que se nega a curvar-se
diante do ressentimento dos fracos.
Resumo da interpretação nietzschiana
Abel = moral de escravo, ressentimento,
piedade, obediência, cristianismo primitivo.
Caim = moral de senhor, afirmação da vida,
força criadora, rebelião contra o Deus moral, futuro além do bem e do mal.
O assassinato = ato fundador necessário para
romper com a moral do rebanho e abrir caminho ao super-homem.
Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche coloca
na boca de Zaratustra uma frase que poderia perfeitamente ser dita por Caim: “É
preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançante.”
Caim carrega esse caos. Abel, nunca.
Após a expulsão do Éden, Adão conheceu Eva,
sua mulher, e ela concebeu e deu à luz Caim. Depois nasceu Abel. Caim tornou-se
lavrador da terra; Abel, pastor de ovelhas.
Chegado o tempo das ofertas, Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor. Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu rebanho e da gordura deste.
O Senhor agradou-se de Abel e de sua oferta,
mas de Caim e de sua oferta não se agradou. Caim irou-se sobremaneira e seu
semblante caiu. Disse então o Senhor a Caim: “Por que te iraste? E por que
descaiu o teu semblante? Se procederes bem, não serás aceito? Mas se procederes
mal, o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre
dominá-lo.” (Gn 4:6-7)
Caim, porém, não quis dominar o desejo - quis
afirmá-lo. Convidou Abel: “Vamos ao campo.” Estando no campo, Caim levantou-se
contra Abel, seu irmão, e o matou.
Perguntou o Senhor a Caim: “Onde está Abel,
teu irmão?” Respondeu ele: “Não sei. Acaso sou eu o guarda do meu irmão?” Disse
o Senhor: “Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra a mim.
Agora, maldito és tu desde a terra que abriu a boca para receber de tuas mãos o
sangue do teu irmão.
Quando lavrares o solo, não mais te dará ele
a sua força; fugitivo e errante serás na terra.” Caim respondeu: “É demasiado
grande o meu castigo para que o possa suportar. Eis que hoje me lanças da face
da terra, e da tua face me esconderei; serei fugitivo e errante na terra; quem
comigo se encontrar me matará.”
Disse-lhe o Senhor: “Portanto, quem matar
Caim será vingado sete vezes.” E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o
ferisse quem quer que o encontrasse.
Caim afastou-se da presença do Senhor e
habitou na terra de Node, ao oriente do Éden. Conheceu Caim sua mulher, e ela
concebeu e deu à luz Enoque. Caim estava construindo uma cidade e deu a essa
cidade o nome de seu filho, Enoque.
Assim, ironicamente, o primeiro assassino
torna-se o primeiro urbanizador, o primeiro que constrói algo duradouro. O
sangue de Abel fertiliza a terra onde crescerá a civilização - uma civilização
que, para Nietzsche, só poderá superar sua origem ressentida quando produzir,
finalmente, o super-homem que diga “sim” à vida tal como Caim ousou fazer, sem
pedir perdão.












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