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domingo, novembro 23, 2025

O Assassinato de Abel por Caim segundo o pensamento de Friedrich Nietzsche


O Assassinato de Abel por Caim à Luz do Pensamento de Friedrich Nietzsche

A história de Caim e Abel aparece no Livro do Gênesis (capítulo 4) da Bíblia hebraica, embora tenha paralelos em mitos mesopotâmicos mais antigos.

Trata-se, porém, de um dos relatos mais profundos e inquietantes da tradição judaico-cristã, e Friedrich Nietzsche - que dedicou boa parte de sua obra a desconstruir a moral judaico-cristã - viu nela um símbolo poderoso da luta entre dois tipos fundamentais de ser humano.

Caim, o homem dionisíaco e livre

Para Nietzsche, o drama de Caim e Abel não é primariamente uma questão de “pecado original” ou de desobediência, mas da tensão entre dois modos de existência: o homem ressentido, reativo e escravo versus o homem soberano, afirmativo e criador.

Abel representa o tipo “escravo” por excelência: o homem piedoso, obediente, que oferece o que acha que Deus quer ouvir e espera recompensa por sua submissão. 




Sua oferta é aceita porque ele já se colocou na posição de servo que antecipa o desejo do senhor. Abel é o protótipo do “rebanho” nietzschiano: vive para ser aprovado, para ser o “bom filho”, o “bom crente”.

Caim, ao contrário, é o homem forte que se rebela contra a humilhação arbitrária. Sua oferta (os frutos da terra, o trabalho duro do agricultor) é rejeitada sem explicação clara.

Deus simplesmente “olha com agrado” para Abel e não para Caim (Gn 4:4-5). Essa preferência divina sem critério racional é, para Nietzsche, o modelo da moral do ressentimento: o fraco (Abel) é premiado exatamente por ser fraco e submisso; o forte (Caim) é punido por sua independência.

O assassinato de Abel pode ser lido, portanto, como o primeiro grande ato de revolta contra a moral de escravo que viria a dominar o Ocidente por milênios. Caim mata o “bom menino”, o favorito de Deus, o símbolo da obediência cega.

Ao fazê-lo, ele diz “não” ao valor supremo do rebanho: a humildade, a resignação, a aceitação passiva do julgamento alheio. Nietzsche escreve em A Genealogia da Moral: “Os escravos revoltam-se inventando a ‘culpa’ e o ‘pecado’ para vingar-se dos fortes. Mas os fortes, quando se revoltam, fazem-no com a espada.”



Caim é esse forte que usa a espada. Ele não pede perdão (note-se que nunca se arrepende no texto bíblico); ele teme apenas a vingança dos outros. Sua resposta a Deus - “Acaso sou eu o guarda do meu irmão?” (Gn 4:9) - é uma das frases mais nietzschianas da Bíblia: recusa da responsabilidade moral imposta de fora, recusa do papel de pastor do rebanho.

A marca de Caim e o eterno retorno do forte

Curiosamente, Deus não mata Caim. Coloca nele um sinal e promete vingança sétupla contra quem o tocar. Nietzsche lê nisso um reconhecimento involuntário da força de Caim: até o Deus judaico-cristão teme o homem que ousou dizer não.

A “marca de Caim” torna-se, na interpretação nietzschiana, o estigma do homem superior - aquele que carrega o peso de sua liberdade e é odiado pelo rebanho exatamente por ser livre.

Caim funda a primeira cidade (Enoque, nome de seu filho). O assassino de Abel torna-se o fundador da civilização. Para Nietzsche, isso é profundamente simbólico: a cultura, a técnica, a arte, a política - tudo nasce do excesso de força do homem que se nega a curvar-se diante do ressentimento dos fracos.

Resumo da interpretação nietzschiana

Abel = moral de escravo, ressentimento, piedade, obediência, cristianismo primitivo.

Caim = moral de senhor, afirmação da vida, força criadora, rebelião contra o Deus moral, futuro além do bem e do mal.

O assassinato = ato fundador necessário para romper com a moral do rebanho e abrir caminho ao super-homem.

Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche coloca na boca de Zaratustra uma frase que poderia perfeitamente ser dita por Caim: “É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançante.”

Caim carrega esse caos. Abel, nunca.

Após a expulsão do Éden, Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz Caim. Depois nasceu Abel. Caim tornou-se lavrador da terra; Abel, pastor de ovelhas.

Chegado o tempo das ofertas, Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor. Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu rebanho e da gordura deste.

 



O Senhor agradou-se de Abel e de sua oferta, mas de Caim e de sua oferta não se agradou. Caim irou-se sobremaneira e seu semblante caiu. Disse então o Senhor a Caim: “Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se procederes bem, não serás aceito? Mas se procederes mal, o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo.” (Gn 4:6-7)

Caim, porém, não quis dominar o desejo - quis afirmá-lo. Convidou Abel: “Vamos ao campo.” Estando no campo, Caim levantou-se contra Abel, seu irmão, e o matou.

Perguntou o Senhor a Caim: “Onde está Abel, teu irmão?” Respondeu ele: “Não sei. Acaso sou eu o guarda do meu irmão?” Disse o Senhor: “Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra a mim. Agora, maldito és tu desde a terra que abriu a boca para receber de tuas mãos o sangue do teu irmão.

Quando lavrares o solo, não mais te dará ele a sua força; fugitivo e errante serás na terra.” Caim respondeu: “É demasiado grande o meu castigo para que o possa suportar. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face me esconderei; serei fugitivo e errante na terra; quem comigo se encontrar me matará.”

Disse-lhe o Senhor: “Portanto, quem matar Caim será vingado sete vezes.” E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o ferisse quem quer que o encontrasse.

Caim afastou-se da presença do Senhor e habitou na terra de Node, ao oriente do Éden. Conheceu Caim sua mulher, e ela concebeu e deu à luz Enoque. Caim estava construindo uma cidade e deu a essa cidade o nome de seu filho, Enoque.

Assim, ironicamente, o primeiro assassino torna-se o primeiro urbanizador, o primeiro que constrói algo duradouro. O sangue de Abel fertiliza a terra onde crescerá a civilização - uma civilização que, para Nietzsche, só poderá superar sua origem ressentida quando produzir, finalmente, o super-homem que diga “sim” à vida tal como Caim ousou fazer, sem pedir perdão.

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