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sexta-feira, setembro 16, 2022

Jesus Voltando


Jesus Voltando - Quando o século XV dava lugar ao XVI, Jesus voltou. Reapareceu na Espanha, nas ruas de Sevilha.

Nenhuma fanfarra saudou seu advento, nem coros de anjos, nem espetáculos sobrenaturais, nem extravagantes fenômenos meteorológicos.

Ao contrário, ele chegou "de mansinho" e "sem ser visto". No entanto, vários passantes o reconheceram, sentiram uma irresistível atração para ele, cercaram-no, amontoaram-se à sua volta, seguiram-no.

“Jesus andou com toda modéstia entre eles, um suave sorriso de inefável misericórdia” nos lábios, estendeu-lhes as mãos, concedeu-lhes sua bênção; e um velho na multidão, cego de infância, milagrosamente recuperou o dom da visão.

A multidão chorou e beijou o chão a seus pés, enquanto crianças jogavam flores à sua frente, cantavam e erguiam as vozes em hosanas.

 Nos degraus da catedral, um préstito em prantos conduzia para dentro um caixãozinho aberto.

Em seu interior, quase escondida pelas flores, jazia uma criança de sete anos, filha única de um cidadão importante.

Exortada pela multidão, a mãe enlutada voltou-se para o recém-chegado e implorou-lhe que trouxesse de volta à vida a menina morta.

O cortejo fúnebre parou, e o caixão foi deposto aos pés dele nos degraus da catedral.

 - Levanta-te, donzela! Ele ordenou em voz baixa, e a menina logo se pôs sentada, olhando em volta e sorrindo, os olhos arregalados de espanto, ainda a segurar o buquê de rosas brancas que fora colocado em suas mãos.

 Esse milagre foi testemunhado pelo cardeal e Grande Inquisidor da cidade, quando passava com seu séquito de guarda-costas “um velho”, de quase noventa anos, alto e empertigado de estatura, com uma cara enrugada e olhos muito fundos, nos quais, no entanto, ardia ainda um brilho de luz.

Tal era o terror que ele inspirava que a multidão, apesar das circunstâncias extraordinárias, caiu em deferente silêncio e abriu-se para dar-lhe passagem.

Tampouco alguém ousou interferir quando, por ordem do velho prelado, o recém-chegado foi sumariamente preso pelos guarda-costas e levado para a prisão.

Esta é a abertura da Parábola do Grande Inquisidor, de Feodor Dostoievski, uma narrativa mais ou menos independente, de vinte e cinco páginas, embutida nas oitocentas e tantas de Os Irmãos Karamazov, romance publicado pela primeira vez em fascículos numa revista de Moscou em 1879 e 1880.

O verdadeiro significado da parábola está no que vem depois do dramático prelúdio. Pois o leitor espera, claro, que o Grande Inquisidor fique devidamente horrorizado ao saber da verdadeira identidade do seu prisioneiro. Não é isso, porém, que acontece.

Quando ele visita Jesus na cela, está claro que sabe muitíssimo bem quem é o prisioneiro; mas esse conhecimento não o detém.

Durante o prolongado debate filosófico que se segue, o velho permanece inflexível em sua posição. Nas escrituras, Jesus é tentado pelo demônio no deserto com a perspectiva de poder, autoridade.

Desde que Os Irmãos Karamazov foi publicado e traduzido, o Grande Inquisidor de Dostoievski gravou-se em nossa consciência como a imagem e a encarnação definitivas da Inquisição.

Podemos compreender o agônico dilema do velho prelado. Podemos admirar a complexidade de seu caráter.

Podemos até mesmo respeitá-lo pelo martírio pessoal que está disposto a aceitar, sua autocondenação à perdição, em nome de uma instituição que considera maior que ele próprio.

Também podemos respeitar seu realismo secular e a compreensão brutalmente cínica por trás dele, a sabedoria mundana que reconhece o mecanismo e a dinâmica do poder mundano.

Alguns de nós bem podem se perguntar se - estando na posição dele e com suas responsabilidades não seriam impelidos a agir como ele.

Mas apesar de toda tolerância, da compreensão, talvez da simpatia e perdão que consigamos angariar para esse homem, não podemos escapar à consciência de que ele é, por qualquer padrão moral honesto, intrinsecamente mau e que a instituição que representa é culpada de uma monstruosa hipocrisia.

Até onde é exato, representativo, o retrato pintado por Dostoievski? Em que medida a figura na parábola reflete com justeza a instituição histórica real?

E se a Inquisição, personificada pelo velho prelado de Dostoievski, pode de fato ser equiparada ao demônio, em que medida pode essa equiparação ser estendida à Igreja como um todo?

Para a maioria das pessoas hoje, qualquer menção à Inquisição sugere a Inquisição da Espanha. Ao buscar uma instituição que refletisse a Igreja Católica como um todo, também Dostoievski invocou a Inquisição na Espanha.

Mas a Inquisição, como existiu na Espanha e em Portugal, foi única desses países e tinha de prestar contas, na verdade, pelo menos tanto à Coroa quanto à Igreja.

Isso não pretende sugerir que a Inquisição não existiu e atuou em outras partes. Existiu e atuou, sim.

Mas a Inquisição papal ou romana como foi conhecida a princípio informalmente, depois oficialmente diferiu daquela da Península Ibérica.

Ao contrário de suas correspondentes ibéricas, a papal ou romana não tinha de prestar contas a nenhum potentado secular.

Atuando por toda a maior parte do resto da Europa, só tinha aliança com a Igreja. Criada no início do século treze, pré-datou a Inquisição espanhola em cerca de 250 anos.

Também durou mais que as correspondentes ibéricas. Enquanto a Inquisição na Espanha e Portugal se achava extinta na terceira década do século dezenove, a papal ou romana sobreviveu.

Existe e continua ativamente em função até mesmo hoje. Mas o faz sob um nome novo, menos emotivo e estigmatizado.

Com seu atual título desinfetado de Congregação para a Doutrina da Fé, ainda desempenha um papel de destaque na vida de milhões de católicos por todo o globo.

Seria um erro, porém, identificar a Inquisição com a Igreja como um todo. Não são a mesma instituição. Por mais importante que a Inquisição tenha sido, e continue a ser no mundo do catolicismo romano, permanece apenas como um aspecto da Igreja.

Houve e ainda há muitos outros aspectos, que nem todos merecem o mesmo opróbrio. Este livro é sobre a Inquisição em suas várias formas, como existiu no passado e existe hoje. Se ela surge sob uma luz dúbia, essa luz não precisa necessariamente estender-se à Igreja em geral.

Em sua origem, a Inquisição foi produto de um mundo brutal, insensível e ignorante. Assim, o que não surpreende, foi ela própria brutal, insensível e ignorante. E não o foi mais do que inúmeras outras instituições da época, espirituais e temporais.

Tanto quanto essas outras instituições fazem parte de nossa herança coletiva. Não podemos, portanto, simplesmente repudiá-la e descartá-la. Devemos enfrentá-la, reconhecê-la, tentar compreendê-la em todos os seus excessos e preconceitos, e depois integrá-la numa nova totalidade.

Meramente lavar as mãos em relação a ela equivale a negar alguma coisa em nós mesmos, em nossa evolução e desenvolvimento como civilização uma forma, na verdade, de automutilação.

Não podemos ter a presunção de emitir julgamento sobre o passado segundo critérios do que é politicamente correto em nosso tempo. Se tentarmos fazer isso, descobriremos que todo o passado é culpado. Então ficaremos apenas com o presente como base para nossas hierarquias de valor; e quaisquer que sejam os valores que abracemos, poucos de nós serão tolos o bastante para louvar o presente como algum tipo de ideal último.

Muitos dos piores excessos do passado foram causados por indivíduos que agiam com o que, segundo o conhecimento e moral da época, julgavam as melhores e mais dignas das intenções.

Seria precipitado imaginar como infalíveis nossas próprias intenções dignas. Seria precipitado imaginar essas intenções incapazes de produzir consequências desastrosas como aquelas pelas quais condenamos nossos antecessores.

A Inquisição às vezes cínica e venal, às vezes maniacamente fanática em suas intenções supostamente louváveis na verdade pode ter sido tão brutal quanto a época que a gerou.

Deve-se repetir, no entanto, que não pode ser equiparada à Igreja como um todo.

E mesmo durante seus períodos de mais raivosa ferocidade, a Inquisição foi obrigada a lutar com outras faces, mais humanas, da Igreja com as ordens monásticas mais esclarecidas, com ordens de frades como a dos franciscanos, com milhares de padres, abades, bispos e prelados individuais de categoria superior, que tentavam sinceramente praticar as virtudes tradicionalmente associadas ao cristianismo.

E não se deve esquecer a energia criativa que a Igreja inspirou na música, pintura, escultura e arquitetura que representa um contraponto para as fogueiras e câmaras de tortura da Inquisição.

No último terço do século dezenove, a Igreja foi obrigada a abrir mão dos últimos vestígios de seu antigo poder secular e político. Para compensar essa perda, buscou consolidar seu poder espiritual e psicológico, exercer um controle mais rigoroso sobre os corações e mentes dos fiéis.

Em consequência disso, o papado se tornou cada vez mais centralizado; e a Inquisição se tornou cada vez mais a voz definitiva do papado. É nessa condição que “re-rotulada de Congregação para a Doutrina da Fé funciona hoje”.

Mas mesmo agora, a Inquisição não impõe de todo a sua vontade. Na verdade, sua posição é cada vez mais assediada, à medida que católicos em todo o mundo adquirem o conhecimento, a sofisticação e a coragem de questionar a autoridade de seus pronunciamentos inflexíveis.

Certamente que houve e, pode-se bem dizer, ainda há Inquisidores dos quais a parábola de Dostoievski oferece um retrato preciso. Em alguns lugares e épocas, esses indivíduos podem de fato ter sido representantes da Inquisição como instituição. Isso, porém, não faz deles necessariamente uma acusação à doutrina cristã que em seu zelo buscaram propagar.

Quanto à própria Inquisição, os leitores deste livro bem podem constatar que foi uma instituição ao mesmo tempo melhor e pior que a descrita na parábola de Dostoievski.

Michael Baigent e Richard Leigh – A Inquisição

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